A idade é um estado de espírito. Nunca sabemos a hora em que seremos convocados para o depois. A longitude de cada um é uma incógnita. Resta-nos o espírito. Hoje, fui tomar minha quarta dose da vacina contra Covid19. O fato de estar qualificado para ela, pelo menos aqui entre nós, significa que andei bastante no terreno de minha longitude. Estava na pequena fila, de todas as idades. Reparei uma avó explicando para a neta a lógica da carta celeste. Se uma de minhas netas ou meu neto estivesse ali comigo, faria o mesmo. A avó se afastou por alguma razão e a neta ficou estudando o céu.
Andamos um pouco. Um casal de jovens estudantes esperava alguém. Conversavam animadamente sobre Édipo e Antígona. Qual era a tragédia mais importante? Não foi a primeira vez que ouvi, indiscreto, jovens conversando sobre a tragédia de Sófocles. Um ano e alguns meses antes da pandemia… Nossa vida, agora, é antes e depois da pandemia. Dois mundos diferentes. Distantes. Enfim, estávamos num restaurante muito frequentado por jovens e turistas. Um casal de estudantes discutia Antígona e suas interpretações possíveis. Fui jovem, naqueles dois momentos. Tínhamos o mesmo gosto e ideias parecidas. Talvez eu soubesse um pouco mais de Antígonas e Édipos, Sófocles, Brecht, Anouilh, Hölderlin. Nada que eles não pudessem aprender naquela idade, indo a uma boa biblioteca. Talvez, mesmo no Google. A menina olhando atenta os astros e os jovens ligados nas nuances da tragédia desenharam um futuro luminoso para mim. Era o futuro se anunciando.
A fila andou e um senhor que estava antes de mim na fila e olhava tudo com um ar aborrecido pediu-me que passasse à sua frente. É contra meus princípios furar fila. Concordei, porque era uma troca de lugares que não afetava os outros. Alguns passos mais e soube por que ele me cedeu sua vez. Com minha atenção posta nos sinais do futuro, não vi o passado a espreitar. O rapaz levantou a mão indicando que estava livre para me atender. Era jovem, cordial, bonito, forte, educado e negro. O racista à minha frente preferiu ser atendido por um branco, por isso me deu a vez. E estávamos, ainda, no simples registro burocrático da vacina. Imaginei o que faria se só houvessem negros com as seringas prontas a nos espetar o braço. Perguntei ao rapaz se era possível escolher a vacina. Ele disse que sim. Fiz minha escolha, agradeci ao jovem e disse que, desde meu primeiro dia como professor de sociologia, eu esperava aquele dia. Ele perguntou meio perplexo se eu falava do dia da vacina. Disse que não. O dia de ser atendido por ele, como um ato simples, nós dois iguais e ele numa posição de superioridade. Como superioridade, ele quis saber. Bastaria você dizer que eu não podia escolher a vacina e eu acataria e tomaria a vacina que você mandasse. Ele me olhou com olhos de entender.
Segui adiante. A jovem que me aplicou a vacina de minha escolha era bonita, orgulhosa, sorridente, segura e negra. A vacina não me emocionou, embora fosse a promessa de que, se contraísse a doença, correria menos risco. Já era minha quarta dose. O que me emocionou foi ter encontrado o futuro literalmente sorrindo para mim. Enquanto caminhava na sua direção, disse para mim mesmo, se pudesse escolher alguém para me aplicar a vacina teria sido ela. Meu dia de sorte. Uso cada situação como estas para praticar meu antirracismo. Tenho que praticá-lo porque sou homem branco, treinado para ser homem branco, educado para ser protagonista. Tenho que aprender o outro diariamente. Saber ceder espaço. Dividir. E, ao aprender estas atitudes, desaprender o que fui ensinado a ser.
De repente, aquele senhor, portador do passado, um velho ressentido e racista, certamente eleitor do governante que tentou atrasar o passo do Brasil na história, pareceu-me derrotado. Mesmo que ele evitasse o rapaz negro, funcionário da prefeitura do Rio, ou a jovem negra, estagiária de medicina, teria que passar por eles, sabendo que estavam ali de direito. Se só estivessem eles, ou os aceitava, ou deixava de tomar a sua dose de vacina. Não andamos tudo que precisamos andar. Mas não estamos parados. O passado no presente não conseguiu bloquear o trajeto aqueles dois jovens.
Voltei para casa pensando em minha trajetória neste terreno minado das relações raciais no Brasil. Morei na avenida W-3, em Brasília, dos nove aos 15 anos de idade. Meu melhor amigo, José Luís, sabia tudo que acontecia no Rio de Janeiro, que ainda era a capital afetiva do Brasil. Ele era carioca do Méier, conhecia o Rio de norte a sul. Seu pai era engenheiro da mesma repartição da qual meu pai era procurador. Zé Luís era negro. Fazia parte da turma da quadra, toda ela branca. Diferente na cor, era referência em várias áreas de nosso interesse. Queríamos saber sobre alguma delas, nem titubeávamos, a fonte era o Zé Luís.
Aquela, era nossa morada transitória. Estávamos todos à espera de que nossas respectivas quadras terminassem de ser construídas. Quando nos mudamos, deixei de encontrar o Zé Luís com frequência. Fomos para uma quadra com apartamentos maiores, destinados a famílias com quatro filhos ou mais. Nós éramos quatro irmãos. Eles eram dois. Ainda saíamos juntos para ir ao cinema, mas os encontros foram escasseando, à medida que a escola apertava e se aproximava o momento do vestibular. Até que nos perdemos de vista. Foi como uma diáspora dos amigos da infância, separados pelos planos urbanísticos de Niemeyer e Lúcio Costa.
Na faculdade, aprendi sobre racismo nos cursos de antropologia. Na sociologia, descobri depois que saltavam este capítulo. Quando passei no concurso, e comecei a dar Introdução à Sociologia, fui o primeiro a não saltar o capítulo das relações raciais. Foi quando percebi que havia algo mais no afastamento do Zé Luís. As rodas de amizade, dinâmicas, não abriam espaço para ele. Eu, inconsciente e com muitos novos interesses, nunca parei para pensar como fui sendo afastado dele. Até o dia em que parei e pensei.
José Luís fez jornalismo e carreira como fotojornalista. Era apaixonado por automobilismo. Todos éramos. Brasília era um autódromo urbano quase sem lei, palco de pegas históricos e da icônica 1000 quilômetros de Brasília, circuito urbano de fama que atraiu os grandes pilotos da época, entre eles os irmãos Fittipaldi, Wilsinho e Emerson. De Brasília saíram, da nossa geração, dois pilotos também de fama internacional. Alex Dias Ribeiro e Nelson Piquet. Havia uma interseção entre nossa turma e a de Piquet. Zé Luiz acompanhou toda a carreira dele, desde aquele início, quando Piquet correu os 1000 quilômetros de Brasília no “Patinho Feio”, construído na garagem do Joca. Zé Luís fotografou Piquet, creio, em todos os circuitos em que ele correu, ao longo de toda a sua trajetória.
Minha experiência de amizade com o Zé Luís foi uma exceção naqueles sombrios anos 1960. Brasília criou, por um momento, a falsa impressão da igualdade. De qualquer modo, ela marcou a trajetória de todos nós. Daquele grupo, apenas uma de nossas amigas, foi racista e, no futuro, apoiaria Bolsonaro. São pessoas como ela que ainda carregam no presente este passado do qual precisamos nos livrar. Não, para apagá-lo da memória. Não podemos esquecer os horrores sobre os quais construímos nossa sociedade. Mas, para abandoná-lo como prática. Não podemos negar o que fomos e ainda somos, mas podemos nos recusar a continuarmos portadores desta isolação do outro.