Ao ouvir a discussão dos ministros do Superior Tribunal Militar sobre a ilegalidade do processo contra Márcio Moreira Alves, fiquei a imaginar sua reação. Seria, com certeza, uma maliciosa tirada de humor. Misturaria a inversão de significado típica da ironia dos britânicos, à astuciosa broma-denúncia cubana, à piada brasileira. Ele viveu na Inglaterra e em Cuba, lugares que o ajudaram a compor esse humor tão próprio, marca de sua personalidade. Frei Beto, em seu velório, leu carta de 1966 em que Márcio falava como sua vida pessoal, hedonista, e sua vida política, ambiciosa, eram complicações que dificultavam que desse testemunho de fé. Ele era mesmo esse híbrido de hedonismo e engajamento.
As gravações foram divulgadas por Míriam Leitão em seu blog, separadamente por não tratarem de tortura, após recebê-las do historiador Carlos Fico, da UFRJ. Não eram sobre tortura, mas eram sobre violência institucional e desrespeito aos direitos civis.
Quando Márcio voltou do exílio, nós nos tornamos amigos muito próximos, de trocar confidências e de confiança absoluta. É minha memória do amigo e não uma tentativa de escrever história. Recuperei uma parte do que escrevi para O Eco quando ele morreu. Márcio foi personagem importante do jornalismo e da política brasileira. Não pode ser esquecido. Ele foi protagonista desta história que resgatamos com a revelação das gravações do STM sobre o processo contra ele na Justiça Militar.
Eu o vi, pela primeira vez em maio de 1968. Eu, estudante, me preparando para o vestibular na UnB onde já fazia um curso de cinema no programa de extensão, ele um jovem deputado do MDB. E foi em 1968 que esta história de tortura e violência institucional começou. O levante estudantil de Paris acendeu o fogo da revolta nos estudantes de muitas partes do mundo. No Brasil passeatas contra a ditadura, inspiradas naquela rebelião, encheram avenidas de várias cidades. Algumas, como as do Rio e de São Paulo foram enormes. Em Brasília, ela foi surpreendente numa cidade com poucos anos de vida. A nova capital federal acabara de completar oito anos no mês de abril.
No dia da passeata, parlamentares do MDB foram à frente, braços dados, para proteger os estudantes da repressão policial. Os estudantes mais politizados o conheciam e o apontavam para os outros. Já era um ícone, antes de se tornar “símbolo transcendente à pessoa, da liberdade de expressão e da liberdade”, como se pintou no discurso aos deputados que decidiriam se deveria ser julgado.
Márcio e seus colegas iam pela avenida W-3 na fila da frente com as lideranças estudantis. Eu ia na segunda fileira. Lembro, além dele, de Hermano Alves e Davi Lerer. Ele se divertia com a passeata e estufava o peito para gritar as palavras de ordem com seu vozeirão. Parecia prever que estava a um passo de fazer história.
A linha de frente defensiva não adiantou. A polícia chegou e investiu contra os manifestantes com fortes jatos d’água e os longos cacetetes, espancando à torta e à direita. Márcio saiu ensopado pelos jatos de água da repressão e mais herói ainda aos olhos dos estudantes. Muitos foram presos. Mas, a prisão não era ainda a antessala da tortura. Passaria a sê-lo em breve.
No dia 2 de setembro, Márcio discursou em protesto contra a invasão da UnB, em 30 de agosto, na qual estudantes foram feridos e muitos presos. No discurso, ele pedia que mães, mulheres e namoradas de militares não comparecessem aos desfiles de 7 de setembro. Os militares ficaram irritadíssimos com a “ofensa às Forças Armadas” e pediram a cassação de seu mandato ao Supremo Tribunal Federal. Abriram também, um inquérito policial-militar (IPM). Foi este o que chegou ao STM. O processo no STF não obteve autorização da Câmara para prosseguir com o julgamento. A Câmara negou a autorização no dia 12 de dezembro, por 216 votos contra, 141 a favor, e 12 em branco. No dia 13 de dezembro de 1968, os militares editaram o famigerado AI-5, que suspendeu todos os direitos civis, e fecharam o Congresso. Decreto de 30 de dezembro de 1968 cassou o mandato parlamentar e suspendeu por dez anos os direitos políticos de Márcio Moreira Alves e outros dez deputados federais, com base no artigo 4º do Ato Institucional nº5.
Foram punidos pelo decreto, “por indicação do Conselho de Segurança Nacional”, Márcio Moreira Alves, Hermano Alves, David Lerer, Hélio Navarro, Gastone Righi, José Lurtz Sabiá, Henrique Henkin, Matheus Shmidt, Renato Archer, José Carlos Guerra e Maurilio Ferreira Lima.
Vinícius de Moraes escreveu que “a gente não faz amigos, reconhece-os”. Foi assim mesmo, nos reconhecemos como velhos amigos na primeira conversa. Vinícius também escreveu que “se um deles morrer, eu ficarei torto para um lado”. Fiquei torto para um lado na sexta-feira, 3 de abril de 2009, quando ele se foi.