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A redescoberta do legado progressista

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Além da qualidade da governança, um dos principais recursos no atendimento da emergência pandêmica é o legado das políticas progressistas anteriores aos regimes de austeridade, nos diferentes países. Nos Estados Unidos, este legado é incipiente. A provisão de saúde é majoritariamente privada. Só muito recentemente, com o chamado “Obamacare”, o seguro saúde foi estendido à população de mais baixa renda. O National Health System, ou NHS, no Reino Unido, o SUS brasileiro, o seguro universal e compulsório de saúde da Alemanha e a rede de hospitais públicos e cobertura gratuita de acidentes e outras emergências da Nova Zelândia, são exemplos que se destacam no momento atual. Muitos sofreram reduções e perdas com as políticas mais conservadoras e privatistas. Mas, o que restou é, hoje, o instrumento decisivo para salvar vidas.

O resgate do legado progressista, tornado indispensável para salvar vidas das vítimas da Covid-19 deu um novo alento à vida comunitária. Ao lado desta onda de solidariedade e empatia, em que o valor do outro se ampliou na proporção do sentimento de solidão, os recursos acumulados pelos governos mais progressistas revalorizaram a responsabilidade pública com os comuns. Poucos serão aqueles que dirão, nos países com sistemas públicos de saúde ainda em condições minimamente funcionais, que a saúde pública é ineficiente e ineficaz e deve ser substituída pela provisão privada.

O primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, que acabou vitimado pela Covid-19 e teve que ser tratado na unidade de terapia intensiva do Saint Thomas Hospital, em Londres, disse não haver dúvida de que sua vida foi salva pelo Sistema Nacional de Saúde. O NHS foi criado em 1948, na gestão de Aneurin Bevan no ministério da Saúde, no gabinete Trabalhista de Clement Attlee. A ideia central partiu de William Beveridge, um pensador reformista, ligado ao então Partido Liberal, que teve, além dele, outras figuras icônicas como John Stuart Mill, John Maynard Keynes, William Gladstone. O sistema de bem-estar britânico do após Segunda Guerra nasceu do Relatório Beveridge, de novembro de 1942, um marco na história das políticas sociais do mundo contemporâneo. Era o Partido Liberal que polarizava com o Partido Conservador. No após-guerra, o Partido Trabalhista tomou seu lugar na concorrência para formação do governo no Reino Unido. No governo Tatcher, o NHS foi parcialmente privatizado. O sistema foi proibido de manter a gestão dos hospitais e passou a comprar os serviços médicos no “mercado interno”, criado para este fim. O novo arranjo passou a ter duas pontas os “compradores” e os “fornecedores” dos serviços de assistência médica. No governo de Tony Blair, nova regulamentação salvou o sistema da trajetória de declínio e estabeleceu que ele deveria atender 98% dos casos de acidentes e emergência, exigência posteriormente reduzida no governo de coalizão entre os Conservadores e os Liberal-Democratas, para 95%. Nos governos Conservadores que o sucederam, aumentou a brecha entre os recursos que recebe e a demanda por seus serviços. Na pandemia, está provando que é essencial e, agora, tem a própria experiência do primeiro-ministro para demonstrá-lo.

Os sistemas de saúde de Itália e Espanha estavam frágeis também em função das políticas de austeridade fiscal impostas aos dois países pelo consenso fiscalista da União Europeia, mantido com mão de ferro pelos alemães, sua principal força econômico-financeira. Este domínio econômico-financeiro se traduz, claro, em poder político. No caso das políticas de austeridade, o rigor defendido pela Alemanha tem prevalecido e afetou duramente países como Grécia, Itália, Espanha e Portugal.

A Alemanha, todavia, não sucateou seu mais que centenário sistema de saúde pública em nome da austeridade. Ao contrário, ele foi preservado e, por isto, os alemães têm hoje um sistema de saúde pública de primeira linha, entre os melhores da Europa, se não o melhor. Foi o primeiro sistema de cobertura universal estabelecido na Europa. Foi criado por Otto Von Bismarck ainda no século XIX, em 1883. No após segunda-guerra, inspirou outros sistemas de assistência médica na Europa. Com o crescimento de governos social-democratas e socialistas, muitos seguiram o exemplo alemão. Na reunificação, nos anos 1990, o seguro de saúde obrigatório foi estendido à população da ex-Alemanha Oriental. É notável, todavia, o elevado grau de continuidade estrutural do sistema, mesmo tendo passado por seguidas reformas. Com um governo confiável, Alemanha foi capaz de responder prontamente à ameaça do vírus, e se destacou por conseguir controlar razoavelmente bem a pandemia e reduzir de forma importante a sua letalidade. Foi o primeiro país a desenvolver um kit de teste genético para o coronavírus. Quanto o inimigo desembarcou na Europa, os hospitais alemães tinham estoque suficiente de kits para testar casos suspeitos e promover o isolamento social de forma muito mais eficaz, focalizando os infectados. A mitigação da velocidade de espalhamento e contágio do vírus permitiu aos hospitais atender até mesmo pessoas com sintomas leves. O tratamento precoce permitiu a redução muito significativa da mortalidade. A mortalidade na Alemanha tem sido mais de cinco vezes menor do que a italiana.

O lado sombrio da austeridade sem critérios sociais ficou evidente para todos. Ela desguarneceu as sociedades de equipamentos de segurança individual e coletiva. Debilitou os hospitais públicos. Reduziu os CTIs. Desfez as redes de proteção social. Com a pandemia e a parada econômica determinada pelo isolamento, o que se precisava era exatamente de hospitais públicos bem aparelhados e com pessoal suficiente, CTIs e ventiladores, e da rede de proteção social para apoiar aqueles que ficaram sem renda ou sem emprego. O valor deste patrimônio público ressurgiu, após anos de desprezo e cortes orçamentários, em nome do superávit fiscal a qualquer custo e sem escalas de prioridade. O pensamento fiscalista dominante, mirava apenas a solvência estatal, sem noção da necessidade de manter a robustez de serviços públicos insubstituíveis pelo mercado. A austeridade destruiu patrimônio público do qual todos, agora dependem, em maior ou menor grau.

É muito provável que no após-pandemia a opção pela austeridade deixe de ser politicamente viável. Não significa abandonar a saudável responsabilidade fiscal, mas passar a considerar como prioridade irreprimível o investimento de natureza social. NO Brasil, além disso, boa parte daqueles setores invisíveis às minguadas políticas sociais do governo, se tornaram visíveis. Não podem mais ser desconsiderados e passarão a ter representação. Sob este aspecto, antes mesmo da pandemia atingir os Estados Unidos, Bernie Sanders já havia saído vitorioso no debate sobre a prioridade social dos Democratas. A plataforma Democrata havia ficado próxima demais do centro Republicano, a ponto de ficar indiferenciada. Agora o partido ampliará sua agenda, não apenas para acomodar a ala representada por Bernie Sanders, Elizabeth Warren e Alexandria Ocasio-Cortez, mas também para diferenciar-se nitidamente da direita republicana que aderiu a Trump e dar respostas mais firmes ao eleitor ansioso e consternado que sairá da pandemia.

O papel crucial do estado no campo social e na regulação das atividades será resgatado pela maioria, na maioria dos países. Ele fez falta agudamente nesta crise, em todos os países que o abandonaram. O setor privado e as seguradoras terão que considerar de outra maneira as emergências e o grau de cobertura que oferecem à população que pode pagar.

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