You are currently viewing Estamos perdendo a Amazônia para o crime

Estamos perdendo a Amazônia para o crime

  • Post category:Sociedade

O desaparecimento do indigenista Bruno Araújo Pereira e do jornalista e escritor britânico Dom Phillips dá maior visibilidade à tragédia que se desenrola na Amazônia com a omissão do governo federal resultante da postura de Bolsonaro. Hoje é possível dizer que estamos prestes a perder a Amazônia para uma poderosa aliança de diversos setores do crime organizado: o boi ilegal, o desmatamento, as queimadas e a grilagem de terras; o garimpo e o contrabando de ouro; o contrabando de espécies nativas, especialmente peixes tropicais ornamentais, quelônios e amostras de nossa biodiversidade; e o tráfico de drogas.

O desaparecimento de Bruno e Dom é parte de um quadro de ameaças, atentados e homicídios impunes que acossam as populações indígenas, os indigenistas, os ambientalistas e os jornalistas. Este quadro não mudará com Bolsonaro no poder. Só vai piorar. No Vale do Javari, onde estão desaparecidos Bruno e Dom, a União dos Povos Indígenas do Javari, UNIVAJA, há vários grupos de populações indígenas, muitas de populações isoladas por vontade própria. A UNIVAJA já fez relatos, requerimentos e demandas às autoridades federais sobre as ameaças e violências a que os povos indígenas estão submetidos, sem qualquer providência. O caso dos dois poderia ter sido prevenido, se o Governo Federal tivesse atendido às reclamações e tomado providências para estabelecer a lei na região.

A Amazônia e, em particular, o Vale do Javari estão sob domínio de uma aliança de organizações criminosas. Esta coalizão de organizações criminosas só pode ser confrontada adequadamente pelos aparelhos do estado sob controle do governo federal. No Brasil pós-Bolsonaro, há um enorme desafio de reconstrução a fazer. A Funai, o Ibama e o ICMBio terão que ser restaurados e reforçados. Isto custará dinheiro, será preciso contratar pessoal técnico, criar novas estações e equipar com embarcações adequadas e tecnologia. O Ministério Público e a Polícia Federal precisarão recuperar a autonomia operacional e o vigor com que desempenha suas funções constitucionais. As unidades das forças armadas na Amazônia precisam ser equipadas com embarcações e tecnologia adequadas à defesa do território e ao controle de fronteiras críticas.

Falamos muito da ocupação de comunidades populares urbanas por bandos de traficantes ou milícias. Mas, raramente nos damos conta da ocupação de vastas áreas públicas da Amazônia, de reservas ambientais e terras indígenas por bandos armados de garimpeiros, grileiros, pescadores clandestinos, contrabandistas e traficantes, em conluio entre eles. As ocupações, nas cidades ou na Amazônia são decorrentes da ausência do Estado, tanto no plano da segurança, como no plano da proteção social. Mas tudo se agravou com a chegada de Bolsonaro à chefia do Executivo Federal. Bolsonaro e seu ex-ministro Ricardo Salles desmontaram todo o aparato federal de proteção aos povos indígenas, aos quilombolas, às populações ribeirinhas e às unidades de conservação ambiental.

O que não pôde ser desmantelado por Bolsonaro e seus asseclas, ele neutralizou por cooptação ou por desautorização. O que não cooptou, nem desautorizou, tenta desacreditar, como tem feito com o INPE, que monitora desmatamento e queimadas, entre outras atividades científicas relevantes. Cooptou o presidente da Câmara, Arthur Lira, que engaveta todos os pedidos de impeachment pela série de crimes de responsabilidade que Bolsonaro tem cometido. Somente esta semana cometeu pelo menos três graves crimes de responsabilidade. Tem mentido sobre as urnas, quebrado o decoro, incitado atos ilegais como disseminar fake news sobre o processo eleitoral serialmente. Além disso, Lira articula e viabiliza o apoio do centrão a Bolsonaro, manejando verbas bilionárias encobertas no chamado “orçamento secreto”. Cooptou a Procuradoria Geral da República, que não o indicia, nem o denuncia por crimes comuns que também tem cometido em série. A PGR tem diminuído a capacidade de atuação do Ministério Público na vigilâcia da moralidade na administração pública, na defesa dos direitos difusos, na proteção ambiental.

Como Bolsonaro desautoriza ações federais? Ele tem impedido, por exemplo, a Polícia Federal de atuar com mais empenho e vigor em eventos que não lhe interessa ver elucidados. Tem usado a prerrogativa de chefe supremo das Forças Armadas, para impedir que atuem com eficácia, como agora, na operação de busca e salvamento do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips. O Comando Militar da Amazônia deixou claro que, embora tivesse capacidade técnico-operacional para participar desse tipo de operação, permanecia inativo por não ter ordem superior para agir. Em virtude da péssima repercussão nas redes, na imprensa e na opinião internacional, 48 horas depois da notícia de que estavam desaparecidos, disse em outra nota que estaria participando das buscas devidamente autorizado. Mas, o que os locais têm informado é que as forças federais — marinha, aeronáutica, exército, polícia federal e Funai — participam apenas superficialmente e não mobilizaram a tempo embarcações e recursos dos quais só elas dispõem.

Bolsonaro, com suas omissões e atitudes de incentivo nos fez perder parcela considerável da Amazônia para o crime organizado. A desenvoltura com que grileiros, garimpeiros, contrabandistas de peixes e outras espécies nativas e boiadeiros atuam hoje, apoiados por jagunços armados, tem a ver com o recuo da ação federal de controle e comando. A escala alcançada por essas atividades econômicas ilegais permitiu seu enlace com o tráfico de drogas, algo sem precedentes.

Curiosamente, quem primeiro chamou minha atenção para a descida do tráfico para os rios e sua tentativa de envolver os crimes ambientais e os ribeirinhos em suas atividades criminosas foi o general Augusto Heleno. Ele havia acabado de deixar o Comando Militar da Amazônia e se mostrava preocupado. Daquela época, por volta de 2008, para cá, o general deixou de se preocupar com o destino da Amazônia e seus povos e aderiu ao projeto de devastação de Bolsonaro. Atualmente no Gabinete de Segurança Institucional, passou a coautor da aventura autocrática de Bolsonaro. Já não tem as mesmas preocupações do passado. Copatrocina projetos de seu chefe que podem levar à destruição do que resta da Amazônia e ao extermínio de povos indígenas.

As consequências dessa aliança de organizações criminosas estão estampadas no desmatamento, na intoxicação por mercúrio provocada pelo garimpo, nas mortes de indígenas, ribeirinhos, extrativistas e todos aqueles que buscam defender que o estado brasileiro cumpra o que a Contituição determina. No auge da pandemia, em 2021, a região Norte foi a única em que o número de mortes violentas intencionais aumentou (10%). A violência urbana em Manaus e Belém aumentou significativamente, com o tráfico de drogas. A descida do tráfico para os rios induziu a instalação de refinarias de drogas no entorno das capitais.

Até o momento em que publiquei esta nota, não havia notícias concretas sobre o que aconteceu com Bruno Pereira e Dom Phillips. A polícia militar do Amazonas deteve um local suspeito de ter perseguido os dois em sua lancha. É pouco. É o retrato do abandono do país pelos poderes da República.