O apoio do PSL à candidatura de Rodrigo Maia é o primeiro ato de realismo do governo. Os fatos se impõem. Quem entende do Legislativo sabe que Maia, que é o candidato mais competitivo, tem dois caminhos para se eleger. Contra o governo, com o apoio das oposições. Com o governo, sem os votos do PT, PCdoB e PSOL. No primeiro caso, teria, ainda apoio dos deputados dos partidos governistas desejosos de mostrar a independência do Legislativo. No segundo, o voto de oposicionistas que preferem Maia a alguém ainda mais próximo do governo. Num caso, o governo apareceria como derrotado e teria menor influência no Legislativo. No outro, capitula ao favoritismo de Maia, mas assegura sua participação na cúpula Legislativa. A conclusão é clara: o governo tem apenas um caminho para ter sucesso. Ou faz uma coalizão, ou perde as condições de aprovação da agenda presidencial. A coligação para eleger Rodrigo Maia, apoiada no acordo pelas reformas é o sinal de que, finalmente, parece começar a entender que o modelo político continua a ser o presidencialismo de coalizão.
Essa decisão não aplaca, todavia, a mentalidade autoritária, nem o voluntarismo da maioria dos membros do novo governo, a começar pelo Chefe do Executivo. Os discursos de posse, do presidente Bolsonaro e dos ministros das Relações Exteriores e da Educação, principalmente, expressaram uma atitude de confronto com parte significativa das forças sociais que estão representadas no Legislativo, inclusive nos partidos no perímetro da possível coalizão governista. É pouco provável que tenhamos um ano sem turbulência e conflitos.
O discurso do ministro da Economia, Paulo Guedes, embora voluntarista, afastou-se do pensamento mediano do governo e, em vários momentos, colou-se no clássico liberalismo conservador, que sempre foi democrático. Não faltaram no discurso do ministro os valores políticos do liberalismo, como a liberdade de expressão e imprensa, por exemplo. Neste sentido e que foi um discurso liberal clássico e, por isso mesmo, não se restringiu à economia. O liberalismo econômico mais comum no Brasil é tecnocrático, circunscreve-se à economia e não contempla seus indissociáveis componentes políticos e comportamentais.
Há dois problemas, contudo, com esse projeto liberal-conservador do ministro da Economia. O primeiro é que ele não tem abrigo nos discursos do chefe do Executivo, nem de seus pares no ministério. O segundo é que, para dar consequência a esta agenda, o ministro precisaria de uma sólida e competente assessoria de relações com o Legislativo. Se a tivesse, talvez não falasse a repórteres, indiscretos por dever profissional, que a reforma da previdência demandaria “prensa no Congresso”. Nem, anteciparia, logo no discurso de posse, a existência de um plano “B” , caso a reforma não venha a ser aprovada. Ele poderia usar sua experiência de mercado financeiro para intuir que agentes políticos, do mesmo modo que os agentes de mercado, trazem tudo a valor presente. Quando diz que o “bonito é isso: se der errado, pode dar certo”, se a reforma da previdência não passar, a desindexação e desvinculação das receitas resolveria, ele retira valor da primeira, que já tem referentes concretos, e põe valor na segunda, ainda uma mera hipótese. Em outras palavras dificulta a negociação da reforma, dá um álibi aos parlamentares para não votar nela e inflaciona o preço politico da segunda, sem garanti-la.
Mexer na Previdência é muito impopular no Brasil, por duas razões principais. A primeira é que o país tem uma cultura previdenciária. Quem está no mercado de trabalho há mais de 20 anos, tem na ponta da língua o tempo que lhe falta para se aposentar. A segunda, é que ela tem capilaridade. A maioria das famílias tem aposentados, pensionistas ou pessoas próximas de se aposentarem. Ou seja, parte da renda real disponível familiar tem uma parcela oriunda da Previdência, ou há expectativa de aumento iminente dessa renda com os recursos previdenciários futuros. Logo, qualquer mudança tem efeito direto e pessoal. Sem falar no lobby daqueles que desfrutam ou pretendem desfrutar dos privilégios generosos dos regimes especiais.
A Previdência tem um componente estrutural, extraeconômico ligado à demografia. É uma questão global, com manifestações locais diferenciadas e, no caso do Brasil, mais agudas, dada a precocidade das aposentadorias. A mudança no orçamento, embora não substitua a reforma da previdência, tem efeitos mais simbólicos e indiretos. Gera resistência, porém mais difusa. Para os políticos, este custo pode ser menor, principalmente se obtiverem compensações colaterais. Nunca se votou a desvinculação total e desindexada, como propôs Paulo Guedes. Mas já se votou desvinculações parciais, desde o governo Itamar Franco, no Plano Real, com o Fundo Social de Emergência. Era o embrião da DRU, Desvinculação das Receitas da União, e nada tinha de emergência ou de social. Sucedido pela DRU, no governo FHC, esta tem sido renovada periodicamente, por todos os governos, inclusive os do PT, sem exceção. A última prorrogação vale até 2023. O argumento dos que se opõem à DRU é o mesmo usado contra o teto dos gastos, aprovado por iniciativa do ex-presidente Temer e, agora, contra a desvinculação plena: retira dinheiro da educação e da saúde.
O fato é que aprovar PECs de desvinculações tem sido mais fácil do que PECs que mexem nos direitos previdenciários. A explicação sociológica simples é que os custos sociais das primeiras são difusos, anônimos, indiretos, gerando, portanto, custos políticos administráveis pelos parlamentares. Os custos da mudança na Previdência, ao contrário, são diretos, afetam pessoalmente os eleitores que perdem renda ou vêem frustradas suas expectativas de renda. O ônus político é mais elevado e mais difícil de administrar. Não significa que seja tarefa simples aprovar a desvinculação. É preciso considerar, como já escrevi, que na agenda presidencial não cabem tantas PECs quantas o governo pretende apresentar. É preciso ter uma escala clara de prioridade.
A declaração de Guedes não facilita a aprovação da desvinculação, mas pode ter dificultado a passagem da Previdência. Mais uma razão para o governo apoiar-se numa coalizão multipartidária e que tenha aliados experientes, como Rodrigo Maia, dispostos a ajudá-lo na tentativa de aprovar suas reformas. Aumenta as chances de sucesso, mas não garante a aprovação. Um ministério em área tão crítica como o da Economia, com uma pauta crucial para o governo e para a estabilidade econômico-financeira do país, não pode se dar ao luxo de cometer erros sérios de relacionamento político com o Legislativo.
Não é um problema exclusivo do ministério da Economia. A carência de articuladores políticos experimentados no governo é geral. No caso da Presidência, pode comprometer a governança e, no limite, a governabilidade. No caso do ministério da Economia, põe em risco a pauta crítica para a estabilidade econômico-financeira do país e para o próprio sucesso do governo.
O contexto é difícil para o governo e para a sociedade. Aos governistas, não bastou a vitória. Continuam em ofensiva polarizada e agressiva contra todos que não se alinham automaticamente a seu pensamento. Querem manter a militância mobilizada. Essa atitude confrontacionista não ajuda na arte de governar. Nem é recomendada como atitude permanente mesmo na arte da guerra. O voluntarismo é a pior atitude possível para aprovar e administrar políticas públicas. Tem enorme potencial de travar as máquinas da política e da administração. Esse padrão de comportamento tende a gerar mais impasses e conflitos do que decisões.