Há previsões mais fáceis que outras. É praticamente impossível prever com alguma precisão as soluções que funcionarão para desativar as crises que se espalham pelo mundo. Mas, dá para dizer que há quase certeza de que a instabilidade econômica, social e política continuará e se agravará na maioria dos países do mundo. As mudanças em curso são estruturais e estão movendo as fundações mais profundas e consolidadas da sociedade global. Como toda mudança radical, ela dissolve paradigmas e espalha incertezas. O novo normal é a insegurança. As pessoas andam hoje em solo movediço, líquido, como caracterizou o sociólogo Zygmunt Bauman. As migrações voluntárias e os deslocamentos forçados aumentam a tensão social, já elevada, nos países mais desenvolvidos. A polarização política debilita os instrumentos convencionais da democracia representativa. Todavia, é a polarização social que oferece mais perigos à democracia e à estabilidade da sociedade contemporânea.
A insatisfação transborda para as ruas e provoca vagas humanas que misturam grupos sociais, gerações e ressentimentos muito diferentes entre si. São capazes de união apenas no descontentamento crescente com o poder vigente. Mas não formam o amálgama de movimentos sociais duráveis e coerentes que levem ao realinhamento das forças políticas. São mobilizações que se dão por contágio e tendem a ser efêmeras, embora ressurgentes. Um bom exemplo foi a recente tsunami de protesto social na França, dos coletes amarelos. Reunia pessoas com inclinações para a esquerda, indignadas com o aumento da desigualdade e dos privilégios, desempregados assustados e dispostos a pôr a culpa por sua situação nos imigrantes, na União Europeia e no governo, indivíduos da extrema direita dispostos a trocar a democracia por um regime de intolerância aberta e autoritário. Eliminado o motivo que as levou às ruas, essas forças extremas e devastadoras põem-se em campos opostos, contribuem para a instabilidade, mas não oferecem base social para novas configurações políticas.
No campo das soluções, estamos todos sem rumo certo. Os liberais não vêem além da austeridade permanente. Sem um programa consistente de políticas sociais compatíveis com as limitações e consequências da transição, o aperto fiscal não resolve, antes agrava, a crise social. Os social-democratas e socialistas preferem negar a crise fiscal do estado e persistem na defesa de políticas que, além de obsoletas, aumentam os problemas fiscais e pioram a própria crise social. O resultado mais frequente é a produção de ciclos eleitorais curtos. Onde a esquerda está no poder, a extrema-direita à espreita consegue conquistar o poder pela via eleitoral. Mas, como não tem soluções que funcionem, sequer entendem a natureza estrutural da crise de transição, frustram os eleitores e tendem a perder espaço pela via eleitoral. Foi o que aconteceu, por exemplo, nas eleições intermediárias nos Estados Unidos. Em países com instituições democráticas frágeis, a suspeita de que o ciclo eleitoral que levou a direita ao poder se esgota rapidamente e os dirigentes conseguem mudam as regras para se perpetuar no poder. É o novo padrão da metamorfose de governos democraticamente eleitos em autocracias fechadas.
Austeridade sem fim, muros, fronteiras fechadas, “limpeza” social não resolvem os problemas. Criam novos e agravam os antigos. Mas o discurso da intolerância, o hipernacionalismo assentado na promessa de restaurar o “orgulho nacional” e, após a remoção dos “outros”, do paraíso para os “seus”, encontram espíritos prontos à adesão emocional. Essas emoções fortes, contudo, não duram na massa difusa que, descontente, provoca esses ciclos eleitorais. No limite, concentram-se nos convictos, uma minoria extremista, capaz de polarizar, mas insuficiente para assegurar a duração dos governos que elegeram.
Os ciclos eleitorais curtos que levam a vitórias surpreendentes, como as de Trump ou Macron, alimentam a instabilidade geral. Plebiscitos e referendos com resultados inesperados, como a Brexit, geram mais impasses que soluções, elevam os riscos e as incertezas da transição. Mudanças nas estruturas profundas como as que atravessamos, tocadas pelas revoluções digital, científica e tecnológica e pela globalização, desorganizam antes de reorganizar. Essas transições geram perturbações sociais em tempo real e criam condições para emergência de novos modos de organização econômica, social e política, no longo prazo, após muita tentativa e erro. Vivemos a era das experimentações e dos imprevistos.
Daí não ser difícil prever que as instabilidades continuarão a afligir o mundo em 2019 e serão mais que ocasionais. Mas, a transição está produzindo novos meios, originais e poderosos, que nos permitem escrever histórias do porvir muito diferentes das biografias coletivas de nosso passado. Nosso presente contém, a cada dia, mais futuro e menos passado. O passado se dissolve em nosso presente e terá participação ínfima em nosso destino. Quanto mais futuro nosso trajeto contém, mais em aberto ele fica. Estamos navegando em águas cada vez menos conhecidas. Isso nos inquieta e amedronta. Ao longo do século XX, o que estava à nossa frente continha muito do que já havíamos vivido. A determinação histórica teve papel muito maior do que terá no século XXI. O que temos diante de nós é o poder de desenhar o mapa de nosso futuro. Somos gerações muito mais independentes das determinações de nossa vida social pretérita, desafiadas a escrever um futuro totalmente inédito. Feliz travessia a todos.
Publicado originalmente no Blog do Matheus Leitão, G1.