Toda vez que ouço ou leio as referências no cotidiano político brasileiro a condutas “republicanas”, fico a reclamar com meu botões, do uso impreciso da linguagem e dos conceitos, como se procurassem esconder os verdadeiros conteúdos, em lugar de esclarecer os propósitos. Incomoda-me, particularmente, o uso corriqueiro do adjetivo “republicano”, como a indicar “honesto”. Sempre me vem à mente que as monarquias parlamentares escandinavas são ou parecem ser mais honestas e democráticas que as repúblicas europeias. A honestidade na política não é monopólio das repúblicas.
Na França, berço da revolução republicana, o ex-presidente Nicolas Sarkozy é processado por corrupção eleitoral. Desde o general De Gaulle, ícone da seriedade pública, não escapou de escândalos sobre financiamento velado a seu partido pela Dassault e pela Bouygues. As relações sempre obscuras entre políticos e franceses e ditadores africanos, é comum ver na crônica política francesa expressões como “as contas secretas da Françafrique”. Françafrique é o nome que os franceses deram ao sistema bastante promíscuo de relações entre a França e suas ex-colônias na África. Foi montado, segundo consta, por Jacques Foccart, por orientação de De Gaulle. Foccart era o poder na sombra para assuntos africanos de De Gaulle e de Georges Pompidou. Outra figura sombria o sucedeu na condução dessa rede internacional de clientelismo, seu discípulo Robert Bougi. Escândalos político-financeiros associados à Françafrique assombraram De Gaulle, Pompidou, Giscard d’Estaing, Jacques Chirac e Sarkozy. É o mais longo escândalo de corrupção política da 5a República francesa.
No Portugal republicano, o escândalo de corrupção mais recente, envolvendo propinas, lavagem de dinheiro e fraude fiscal, levou à prisão o ex-primeiro-ministro José Sócrates. Há outros casos de corrupção, como da Expo-98, da Euro-2004, dos submarinos, do Banco Português de Negócios (BPN) e do Banco Privado Português (BPP). O caso dos submarinos refere-se a denúncias de corrupção na compra de dois submarinos a um consórcio alemão, envolvendo o Banco Espírito Santo, a empresa do grupo, a ECOM e políticos do governo de então. Ele se estendeu de 2003 a 2014. Em Portugal, os processos foram arquivados em meio a muita polêmica e evidências de crimes apontadas pelo inquérito. Na União Europeia, também, em meio a muitas acusações de que esse arquivamento teve a mão de Durão Barroso, então presidente da UE. Na Alemanha, dois ex-executivos da empresa Ferrostaal foram condenados pelo pagamento de propinas a políticos e funcionários de Portugal.
Na Espanha, monarquia parlamentar, o escândalo de corrupção relacionado a financiamentos públicos irregulares à ONG Instituto Nóos, atingiu a própria família real. A ONG é presidida pelo marido da princesa Cristina, Iñaki Urdangarin. Seu sócio no Instituto Nóos, Diego Torres, é acusado de desvio de recursos públicos. O próprio rei Juan Carlos I se viu envolvido em um nebuloso affair que passa por caça de elefantes em Botswana em companhia Corinna zu Sayn-Wittgenstein, jovem dinamarquesa de origem plebéia, que mantém o sobrenome nobre do ex-marido. A aristocracia alemã vale pouco. Desde que o país se tornou uma república, foram eliminados os privilégios de estirpe. Corinna é uma mulher de negócios, acostumada a transitar no mundo das altas finanças europeias, representando magnatas ou o principado de Mônaco, na intermediação de investimentos. Esse affair acabou convergindo para o caso Urdangarin, quando a própria Corinna acabou revelando que Juan Carlos teria lhe pedido que desse emprego ao genro na Fundação Laureus. O rei abdicou em função desse imbroglio todo e assumiu o filho com o título de Felipe VI. Todo o caso ainda está sub judice e o próprio ex-monarca pode ser levado a julgamento. Ao abdicar, Juan Carlos perdeu a imunidade. O PP, partido então no poder sob comando de Mariano Rajoy apresentou emenda a projeto de lei em trâmite no Congresso, assegurando foro privilegiado ao ex-monarca, para que seja julgado apenas pelo SupremoTribunal Federal, tanto por processos cíveis, quanto penais.
O que seria, então, corretamente entendida, uma conversa republicana? Só poderia ser uma para acertar o fim dos privilégios de origem aristocrática que contaminam a ordem republicana no Brasil, como o foro privilegiado, como o próprio nome indica. O Brasil não consegue esconder seus ranços aristocráticos e imperiais, em alguma expressões que perduram em nossa conversação política. Uma delas, é “justiça ordinária”, para designar o juízo de primeira instância. Ordinária, porque, nas monarquias, é a justiça dos plebeus, em contraste com a justiça dos nobres. No Judiciário republicano, a primeira instância é o juízo inicial, onde têm origem os processos, e sobre a qual há, pelo menos, duas instâncias de recurso, os tribunais regionais federais e o Superior Tribunal de Justiça. Se a causa envolver uma dúvida constitucional legítima há, ainda, o recurso ao SupremoTribunal Federal. Quando se expressa o temor de ser julgado em primeira instância e se busca o foro privilegiado, um privilégio de posto, portanto, derivado do privilégio de título (nobiliárquico), não se está sendo definitivamente republicano. Além disso, denuncia-se uma grave presunção de leniência de parte da Suprema Corte o que pressuporia imaginar que nas indicações para a mais alta função da magistratura, não se examina os atributos necessários de saber jurídico, reputação ilibada e honradez, mas apenas o alinhamento político a quem indica o nome ao Senado. Ou seja, teria valido mais a lealdade do que a competência. As ofensas que os ministros mais envolvidos em julgamentos da Lava Jato, de governistas e de opositores, nesse ambiente tóxico que se formou com a polarização radicalizada da política brasileira, parece indicar que não é bem assim.