A relação entre petróleo — principalmente estatal — e corrupção é conhecida. Aconteceu na Itália, nos anos 80, no Irã no período de Reza Pahlavi, na Líbia de Kadafi, no México na época do PRI. O nexo entre clientelismo (a troca de votos e apoio político por favores) e corrupção — para ganho do partido ou pessoal — também. A ocorrência dos três juntos é frequente e tem explicação muito robusta. Há uma vasta literatura na sociologia e na ciência política tratando das interações recorrentes entre petróleo, clientelismo e corrupção na história política de vários países, na Europa, na América Latina, na África e na Ásia. Nos Estados Unidos, as peripécias das indústrias Koch, em financiamentos de campanhas políticas e de difamação de cientistas, na linha difusa da fronteira entre o legal e o ilegal, vão na mesma direção. A indústria do petróleo e, sobretudo, mas não exclusivamente, as estatais de petróleo são um veículo particularmente propício e vulnerável para financiar essa conexão entre clientelismo e corrupção política. Outro elo que, frequentemente, emerge nas investigações sobre corrupção, nesse espaço de interseção com o clientelismo, é o crime organizado, ou a formação de uma organização criminosa para administrar essa relação.
A conexão clientelismo-corrupção e o presidencialismo de coalizão
Tem sido tão comum a justaposição, na prática, entre clientelismo e corrupção, que muitos imaginam que sejam fenômenos idênticos. Mas não são. A troca de favores por votos ou apoio político, a distribuição e uso de cargos públicos, embora sempre corram o risco de serem operadas em território moralmente difuso, podem não envolver corrupção em si, isto é, o fluxo ilegal de dinheiro para benefício partidário ou pessoal. Pode haver só clientelismo e pode haver só corrupção. Há corrupção, mas não necessariamente clientelismo, por exemplo, quando há pagamento de propina para obtenção de uma licença, ou para a solução de uma pendência burocrática. O uso de propina para financiar favores, inclusive para os eleitores e para a base do partido ou do político é mais frequente nos ambientes clientelistas. Esse dinheiro nunca é uma doação filantrópica ou ideológica. É sempre um investimento, em tempo real ou de médio prazo — propina com expectativa de obter vantagem lucrativa futura — ou um pagamento — propina por vantagens lucrativas já obtidas.
Essas vantagens lucrativas têm fonte pública, como compras governamentais, o orçamento de custeio (comida e medicamentos para hospitais, escolas e presídios; uniformes; equipamentos de computação, entre várias outras) ou orçamento de investimentos (obras públicas em geral, infraestrutura, energia, logística). Há várias outras fontes problemáticas: fraudes tributárias, previdenciárias, arreglo de contencioso jurídico. Mas as empresas estatais e o orçamento de investimentos, por sua escala, representam a fonte mais abundante e mais ágil — porque geralmente fora do círculo de regulação e controle mais rígido da administração central. As estatais de petróleo e mineração são as preferidas, pelo enorme volume de receitas e fluxo de caixa que elas geram.
O Brasil tem várias características culturais e institucionais que facilitam o clientelismo e a corrupção. No caso do clientelismo, é notório o déficit programático dos partidos políticos, um dos fatores centrais mais usualmente identificados na explicação da emergência do clientelismo. Luigi Grazziani, um dos primeiros a estudar a fundo o clientelismo italiano, demonstrou que a fraqueza dos partidos, particularmente da Democracia Cristã, na mediação entre sociedade e estado está no centro da gênese e declínio do sistema. Outro componente institucional que propicia o clientelismo é a fragmentação partidária, sobretudo quando leva à necessidade de formar maiorias para assegurar a governança. O presidencialismo de coalizão é, intrinsecamente, um modelo que se assenta na fragmentação entre alta e extrema, que impossibilita maiorias unipartidárias e, consequentemente, requer a formação da maioria por meio de coalizão. Mas não é um modelo político necessária ou intrinsecamente clientelista. O clientelismo não está no presidencialismo — há regimes presidencialistas não-clientelistas — nem na coalizão — existem governos de coalizão programáticos. O clientelismo está no modo de formação das coalizões, portanto nos apetites, atitudes e objetivos dos partidos e dos políticos. O clientelismo caracteriza o modelo político quando ele é o modo dominante de formação de maiorias. A cultura clientelista predomina em nossa estrutura partidária. Ela é fortalecida pela preferência por grandes coalizões em lugar de coalizões simples (50% + 1) ou quando a grande coalizão é uma condição necessária à governabilidade. Suas raízes todavia vão além da propensão à criação de partidos não-programáticos e à conversão ao clientelismo de partidos que nasceram programáticos no processo de formação de grandes coalizões majoritárias. Outras práticas institucionais induzem à impunidade e a uma cultura social de leniência, que formam o caldo político-institucional no qual a conexão clientelismo-corrupção se desenvolve.
Essa modalidade de relacionamento político caracteriza-se pela ausência de compromissos programáticos e agendas claras e factíveis de políticas públicas, que são substituídos pelo vínculo direto entre o partido no poder e suas bases. Por meio dessas ligações diretas, o governo e o aparato estatal transferem benefícios, privilégios e prerrogativas para as bases, no território eleitoral do partido, e para as elites, no espaço de financiamento de campanhas. Esse sistema necessita de “despachantes” e intermediários, que fazem as ligações entre as fontes de benefícios — lato-sensu — e os seus destinatários. Intermediários entre governo e bases sociais, geralmente cabos eleitorais, membros dos partidos e ocupantes de determinados cargos públicos, no caso do clientelismo. Operadores de redes de propinas, que fazem a ponte entre a fonte dos recursos, associadas a compras, obras ou investimentos, e os destinatários dos recursos, no caso da corrupção.
A dificuldade e os riscos na busca de “parceiros” para expandir a rede de corrupção — quanto maior o número de envolvidos, maior a probabilidade de defecção e delação — promovem a “cartelização” dos fornecedores e a divisão negociada e proporcional das parcelas desviadas para o financiamento do esquema entre os membros do cartel e entre os partidos da coalizão. Essa cartelização, o volume, extensão e complexidade desses fluxos, a necessidade de operações sofisticadas de lavagem de dinheiro induzem à formação de organizações criminosas. O que era um esquema direto de corrupção, se transforma em uma organização criminosa e se cria, então, o terceiro elo dessa conexão, o do crime organizado. O que as pesquisas mostram é que o grau de consolidação e abrangência desses esquemas de clientelismo-corrupção-crime organizado, em ambientes institucionais propícios, termina por operar como um poderoso incentivo à sua disseminação e reduzir dramaticamente as alternativas de relacionamento político. Em outras, poucas palavras: o sucesso e ampliação dessa conexão tornam muito mais atrativa a parceria no esquema, do que as vias legais e legítimas. Na ausência de uma barreira moral e dada a baixa probabilidade de punição, os partidos e os políticos, as empresas e os empresários acabam aderindo ao esquema dominante. Nem preciso dizer que esse sistema estabelece relações específicas de dominação política, profundamente assimétricas e desiguais.
Esses ambientes institucionais pressupõem impunidade judicial, discricionariedade orçamentária e baixa transparência nas transações públicas, além de estruturas de regulação e fiscalização fracas, com baixa autonomia jurisdicional, operacional e financeira. Esse ambiente permissivo do clientelismo institucionalizado cria incentivos adicionais a que os políticos resistam a aprovar reformas que, de fato, aumentem a transparência e a responsabilização ou fortaleçam o domínio da lei. Um exemplo notável disso foi a aprovação pelo Executivo e pelo Legislativo, no Brasil, de lei leniente com o repatriamento de recursos ilegais no exterior, no exato momento em que o Judiciário vem investigando extensos esquemas de lavagem de dinheiro em paraísos fiscais. O sistema regulatório tolerado pelo clientelismo é, tipicamente, vulnerável ao seu controle via ocupação da cúpula regulatória por agentes partidários e à corrupção.
Uma característica particularmente notável — e geralmente pouco considerada — é que o funcionamento desses sistemas de clientelismo e corrupção, na maioria dos casos, envolve a focalização da confiança em uma pessoa central ou um pequeno grupo de pessoas, em um ambiente caracterizado por um clima de desconfiança e polarização. Essa pessoa, quando uma única figura política detém o quase-monopólio da confiança, ou essas pessoas, quando há um grupo de pessoas nas quais a confiança está focalizada, são as avalistas políticas desse sistema. Nesse sentido, ele se parece com as organizações de tipo mafioso e com o banditismo chamado social. A relação tem um componente fiduciário e quando este se rompe, o sistema se quebra. Um componente fiduciário que exige a presença de um chefe e seus barões, um “capo dei capi” e seus lugares-tenentes (chefetes). Este é o ponto crucial sobre o qual atuam os acordos de colaboração premiada, a quebra do elo de confiança que mantém a integridade do sistema
Essas redes de corrupção, quando múltiplas e extensas, tendem a ter alto grau de autonomia operacional e criar jurisdições, nichos, nos quais se instalam com exclusividade. Daí, frequentemente, nos grandes escândalos de corrupção — como o que deu origem à operação Mãos Limpas na Itália, o mensalão e o que está sendo investigado pela Lava Jato e outras similares — surgirem redes em várias estatais e fundos de pensão que, embora favorecendo o mesmo esquema de poder, mantém relativa autonomia entre elas e, às vezes, concorrem entre si. E, mais aflitivo ainda, há evidências de pesquisas na Europa e na América Latina sobre essa conexão clientelismo-corrupção, que mostram que essas máquinas clientelistas têm uma propensão a gastar além de seus meios, demandando volumes crescentes de recursos para distribuir. Por isso, se os esquemas clientelistas usam fontes de financiamento baseadas em corrupção, eles tendem à grande corrupção, de natureza sistêmica e larga escala. Um mercado de licenças ou favores burocráticos, não é base suficiente para uma rede desse tipo. Ela tem que se instalar nos sistemas de compras e investimentos públicos. É o que explica essas somas extravagantes que surgem das investigações. Um dos pioneiros nesses estudos, Alessandro Pizzorno, ao escrever sobre a corrupção política na Itália, explicou que a eficácia da corrupção está no fato de que ela provê um mecanismo de reforço que atua como um multiplicador dos recursos que permitem ao partido clientelista manter-se competitivo, assegurando-lhe a permanência no poder. Um outro elemento que surgiu do estudo da tsunami de corrupção nos anos 1980 na Itália é o da sucessão de um sistema de clientelismo/corrupção mais tradicional por outro mais avançado. O corpo formado pelo clientelismo e pela corrupção se adapta e evolui. Essa ampliação das redes de clientelismo-corrupção promove a metamorfose da corrupção que começa como disfuncionalidade administrativa em prática sistêmica.
O uso das empresas de mineração, particularmente de petróleo, de propriedade estatal, como bases de captação de recursos para o clientelismo é bastante comum na história política da Europa, América Latina, África e Ásia. Também é comum seu uso como contrapartida para a canalização, via corrupção, de fundos privados para o clientelismo e para proveito de políticos e funcionários. A Codelco (cobre), no Chile, a PeMex (petróleo) no México, a PDVSA (petróleo) da Venezuela, o ENI (petróleo) na Itália, a Elf na França, todas têm ou tiveram relações históricas com esquemas clientelistas, usualmente associados a grandes redes de corrupção. Escândalos de corrupção marcaram, também, a NNPCP, na Nigéria, e a Pertamina, na Indonésia.
Pelo menos nas fases mais “ingênuas” do populismo e do clientelismo predominou o uso “fiscal” das receitas por elas geradas, como fonte de financiamento dos arranjos político-eleitorais. Financiavam o gasto clientelista diretamente ou por meio de impostos, taxas ou royalties especializados. Isto aconteceu no Brasil com a Vale do Rio Doce, quando era estatal, e com a Petrobrás, depois que se descobriu petróleo na costa brasileira. Nessas formas, digamos, “ingênuas”, puramente fiscais, o grau de corrupção é menor e está geralmente associado ao enriquecimento de alguns indivíduos no topo da máquina.
O estudo pioneiro de Terry Lynn Karl (The Paradox of Plenty) demonstrou como a democracia assegurada pelo pacto de Punto Fijo, na Venezuela, foi financiada pela PDVSA. Chávez apenas substituiu o esquema clientelista tradicional, pelo seu próprio. Mostrou, também, algumas similitudes importantes entre Venezuela, Irã, Nigeria e Argélia, naquele período (fim dos 1970’s, início dos 1980’s). Ilustrou como esses esquemas têm uma fragilidade econômica inarredável, associada aos ciclos de expansão-colapso (boom-bust) determinados pelos caprichos e vicissitudes do mercado de commodities. Na dêbacle do final do ciclo, nesses exemplos, também desmoronaram os sistemas políticos de poder. Não deveriam surpreender, portanto, nem o colapso prolongado e doloroso da Venezuela, nem o desmoronamento do processo de extração de propinas na Petrobrás.
Essa prática mais tradicional se expandiu, transformando a conexão petróleo-clientelismo (aí incluída a mineração), de natureza mais “fiscal”, em uma rede petróleo-clientelismo-corrupção. As modalidades de montagem da conexão com a empresa de petróleo variam. Na Nigéria, por exemplo, houve um período em que os contratos tinham um percentual de comissão explícito e um beneficiário também mencionado explicitamente. Em geral, uma pessoa conhecida no meio, que se tornava a operadora ou intermediária daquele elo da cadeia de corrupção. No caso brasileiro, envolveu um sofisticado sistema de licitações de resultado acertado, com a operação de um cartel de empreiteiras e um anel interno de operadores ligados a intermediários. Esse anel de operadores servia de ponte entre empresas e partidos, com a intermediação adicional de especialistas em lavagem de dinheiro (doleiros, financistas e escritórios de advocacia especializados em criar empresas-laranja em paraísos fiscais). Essa parece ter sido a modalidade dominante, embora algumas empresas tivessem seus próprios mecanismos de lavagem de dinheiro preestabelecidos.
Tudo isso se baseia em delicadas e complicadas negociações, que envolvem necessariamente algum ou alguns agentes fiduciários para garantir a todas as partes o cumprimento das respectivas obrigações nesses “contratos”. Porque é disso que se trata: contratos de boca, que envolvem obrigações e pagamentos de parte a parte, à margem da lei, portanto que requerem algum mecanismo fiduciário que tenha credibilidade, a garantir seu cumprimento. Para aumentar a confiabilidade do esquema e lhe dar uma aparência de legalidade e legitimidade, partes desses contratos nas sombras são transferidas para contratos com força legal, como, por exemplo, compromissos de compra e venda, contratos de fornecimento de bens e serviços, e assim por diante, que geram notas e compromissos fiscais e podem, inclusive, ser cobrados judicialmente.
É claro que essa conexão não é exclusiva do petróleo. Mas a grande corrupção nessas redes clientelistas complexas requer certas características econômicas, de escala, volume e procedimentos, que são mais facilmente encontradas no setor mineral. Os setores de infraestrutura e logística também têm essas características. Contudo, a cadeia de petróleo e gás abriga tanto o lado extrativo e de transformação, quanto o de infraestrutura e logística, concentrando todas as vantagens numa estrutura. Nos Estados Unidos, por exemplo, a grande corrupção está mais associada a compras públicas que exigem pesquisa e desenvolvimento ultraespecializados e confidenciais ou secretos, como o desenvolvimento de drones, aeronaves, armas e outros artefatos militares de alta-tecnologia. Mas, no caso da conexão clientelismo-corrupção, o alvo principal são as compras de projetos de larga escala, complexos, como barragens, plataformas de exploração, refinarias, sistemas de tancagem, portos e aeroportos. Seus custos podem ser manejados de forma mais flexível (movimentação de terra ou concretagem, por exemplo) para permitir superfaturamento. Além disso, permitem ampla escamoteação de custos pela via da escolha de tecnologias, traçados e de mudanças, aditivos e extensões contratuais.
O petróleo tem, ainda, características específicas que são altamente sedutoras para que uma empresa ou o setor como um todo hospedem redes organizadas de clientelismo-corrupção. Primeiro, envolve um fluxo global de recursos financeiros da ordem dos trilhões de dólares em toda a sua cadeia de valor, que é extensa e diversificada. Transações unitárias, como a compra de uma plataforma, um navio-sonda ou uma refinaria, envolvem enormes quantias, em prazos relativamente curtos. Oferece, portanto, escala financeira incomum. Segundo, a indústria do petróleo é complexa tanto na sua estrutura, como nos procedimentos fiscais, legais e comerciais relacionados aos fluxos de valores, tornando mais fácil manipulá-los e “maquiar” essa manipulação para obter ganhos partidários ou pessoais. Terceiro, a escala da indústria de óleo e gás cria monopólios naturais, não apenas na exploração das concessões, mas também nos gasodutos, terminais e portos. Esses monopólios ou oligopólios concentrados têm como contrapartida monopsônios e oligopsônios que facilitam o controle discricionário das transações de compra e contratação e o estabelecimento arbitrário de taxas e tarifas. Simplificando, ele é monopolista ou cartelizado nas duas pontas. Essa atividade sempre foi considerada estratégica e de “interesse e segurança nacional”, o que justifica reduzir a transparência das transações e manter vários aspectos delas sob segredo. Tudo isso facilita a corrupção e cria condições vantajosas para a operação de redes organizadas extensas, complexas e de grande escala de corrupção para financiar o clientelismo.
Combater a conexão clientelismo-corrupção não é fácil
Combater a conexão clientelismo-corrupção não é fácil, nem se resume a uma sumária lista de reformas legais ou à reforma política. Não pretendo dar uma receita, que não tenho. Apenas comentar alguns pontos que considero merecerem mais atenção e discussão entre nós.
As propostas de legislação anti-corrupção do Ministério Público, focalizam o lado da corrupção dessa conexão. A maioria pode reduzir os incentivos à corrupção, pelo aumento da transparência, redução da impunidade e aumento do rigor punitivo para crimes do colarinho branco e de caixa-dois em campanhas políticas, alcançando os partidos políticos, e levando ao sequestro dos valores obtidos ilegalmente. São, portanto, medidas que alteram a estrutura de incentivos que hoje favorece a corrupção.
A decisão recente do Supremo Tribunal Federal autorizando a prisão de condenados que tenham a sentença confirmada em segunda instância, foi um avanço importante nesse sentido. Repara, em parte, a enorme latitude do conceito de trânsito em julgado em nosso país. Uma latitude que incentiva a protelatória apresentação serial de recursos, a síndrome nociva do agravo-do-agravo-do agravo, que resulta, frequentemente, no não-cumprimento da pena. Para quem tem acesso às grandes bancas de advocacia, com legitimidade e autoridade para multiplicar os agravos, praticamente não há trânsito em julgado. Para esses poderosos, a presunção de inocência acaba se transmutando em isenção de culpa, em imunidade, que equivale à impunidade.
O MP propõe, ainda, com o mesmo objetivo de garantir o pleno cumprimento da pena, o fim da “prescrição retroativa”: pela qual o juiz aplica a sentença ao final, mas o prazo é projetado para o passado a partir do recebimento da denúncia. As propostas extravasam o terreno do direito penal, para buscar a celeridade nas ações cíveis de improbidade administrativa, acabando com a fase preliminar da ação de improbidade administrativa e prevendo o agravo retido contra decisão que receber a ação. Recomenda, ainda, a criação de turmas, câmaras e varas especializadas no âmbito do Poder Judiciário; a instituição do acordo de leniência para processos de improbidade administrativa – atualmente existente apenas em processos penais, na forma de colaboração premiada; e administrativos, na apuração dos próprios órgãos públicos.
Sinto falta neste rol de medidas, da revisão do conceito de formação de bando ou quadrilha para cometimento de crime, para torná-lo mais claro e abrangente, e o aumento significativo das penas, de acordo com a extensão, gravidade e valor dos crimes praticados. Na linha do que o ministério público propõe para as penas associadas aos montantes de dinheiro envolvido nos crimes de corrupção. Seria um elemento significativo no combate ao elo da organização criminosa nessa tríplice conexão: clientelismo-corrupção-crime organizado.
Todavia, embora muito importantes como parte de uma estratégia de combate a essa conexão, inibindo a corrupção, não afeta o outro lado da estrutura de incentivos, que induz ao clientelismo. Muitos imaginam ser possível atacar o clientelismo por meio de reformas nas regras eleitorais e partidárias, a chamada reforma política. Mas essas medidas não teriam toda a eficácia pretendida. Não se trata apenas de forçar a redução do número de partidos, mudando para o sistema alemão, misto majoritário-distrital e proporcional, ou por cláusulas de barreira. Também, não seria punindo com a cassação aqueles que fugirem a uma noção estreita de fidelidade partidária, entendida como “votar como o partido orienta”. Se o partido é clientelista, esse voto “fiel” não poderia ser considerado “programático”. Continuaria tendo uma orientação clientelista. Algumas providências teriam alguma eficácia na redução da fragmentação, que é, sim, um dos componentes sistêmicos indutores do clientelismo. Particularmente tenho maior inclinação em admitir como mais eficazes a proibição de alianças e coligações nas eleições proporcionais e a mudança no cálculo da proporcionalidade, adotando um algoritmo mais exigente em número de votos para a alocação de cadeiras aos partidos. Em outras palavras, que gere um quociente partidário mais alto tanto para a primeira cadeira, como para as restantes em sucessão. Essas duas medidas combinadas tenderiam a reduzir a fragmentação, aumentando o “custo em votos” do acesso à representação parlamentar, reduzindo as sobras partidárias e fortalecendo os partidos capazes de obter esse volume de votos.
Mas não é só porque a fragmentação requer coalizões que estas se farão pela via clientelista. O clientelismo decorre da justaposição, entre a). fragmentação; b). discricionariedade no gasto público; c). estrutura onerosa das campanhas, padrão de financiamento das campanhas e distribuição desigual do tempo de propaganda gratuita na TV e no rádio; e d). impunidade. Portanto, seria necessário enfrentar essa convergência em todos os seus pontos simultaneamente.
A reforma política teria que alcançar as campanhas, seu financiamento e a distribuição mais democrática do tempo de mídia gratuita. Este deveria ser bem menor, deixando margem maior ao contato mais direto entre candidatos e eleitores. No lado do financiamento, a solução não é, necessariamente, o financiamento público, ou seja pendurar toda a conta das campanhas no orçamento público. A meu ver não faz muito sentido os contribuintes subsidiarem os partidos, cegamente, independentemente de suas preferências partidárias e do conceito que fazem dos partidos. O subsídio implícito, não-transparente para o público, nunca aparece como sendo pago pelos cidadãos. Quem aparece como pagadora é essa entidade mágica, o Tesouro, que só tem duas fontes de numerário: a emissão de dinheiro ou o imposto dos cidadãos. Como a emissão é limitada pelas precauções necessárias da política monetária, quem paga a conta do Tesouro é o cidadão, qualquer seja a conta.
Logo, a transparência das contas públicas, a explicitação dos subsídios e a clara associação entre impostos e gastos, é parte indispensável da mudança da cultura clientelista. Não é de austeridade fiscal, no sentido neoliberal, que estou falando. É mais simples e direto: todo gasto é possível, desde que fique claro para os cidadãos que eles vão pagar por esse gasto, via tributação, se assim o desejarem. Transformar, progressivamente, a discricionariedade dos políticos e tecnocratas sobre o gasto público em escolha coletiva consciente dos cidadãos, por meio de eleições, referendos, “town-halls” e audiências públicas. A discricionariedade, ao ser drasticamente reduzida, criaria incentivo forte à discussão programática sobre a alocação do gasto público, que hoje é tipicamente uma decisão clientelista. O orçamento passaria a ser impositivo, uma vez que resultaria de escolhas eleitorais entre propostas claras de como, onde, com quem, quanto e quando gastar. O que implica a eliminação de subsídios implícitos e não registrados com clareza no orçamento. A fidelidade partidária resultaria da necessária adesão da maioria parlamentar à vontade majoritária do eleitorado-contribuinte. O fim da discricionariedade demandaria profunda reforma fiscal e orçamentária, não no sentido que é hoje comumente atribuído a essa ideia — de corte de gastos — mas no sentido de mudança radical nos procedimentos orçamentários e do gasto público, nos mecanismos de transparência, fiscalização e controle (accountability) e na compulsoriedade da execução orçamentária, com limitadíssimas possibilidades emergenciais de aditamentos posteriores.
Uma reforma fiscal e orçamentária dessa profundidade demandaria correspondente reforma tributária, com redução da carga de impostos e simplificação da estrutura impositiva, aí incluído o aumento de sua transparência, para que às escolhas sobre o gasto, correspondam, também, escolhas sobre quem paga o quê, quanto, quando e como. Sabendo mais sobre o gasto e seu financiamento, os eleitores passam a ter maior consciência do retorno associado aos impostos que pagam, por meio não apenas de serviços públicos que lhes são diretamente prestados, mas também pela satisfação de valores e ideais, que se concretizam em expressões culturais, de relações internacionais, e similares. Esses dois conjuntos de mudanças afetariam a estrutura federativa, aumentando a descentralização e reduzindo o tamanho e o peso fiscal e tributário da União.
Campanhas eleitorais, nesse contexto fiscal, orçamentário e tributário, teriam que expor aos eleitores as escolhas diferenciadas sobre como gastar e como pagar pelos gastos, tornando-se campanhas programáticas por necessidade e não por obrigação formal. Isto é, campanhas sobre as prioridades pelas quais a maioria está disposta a pagar e a cuja implementação delega a seus representantes. Basta examinar as campanhas em países de baixo componente clientelista, para verificar que a maior parte da agenda na qual se assenta a competição diz respeito, no fundo, a quanto e como gastar e quanto pagar de impostos.
Teoricamente, a complexidade do combate à conexão clientelismo-corrupção tem solução, embora esta seja multidimensional e multifacetada. Mas se mudanças nesses eixos tenderiam a enfraquecer, se não eliminar essa conexão, esse breve elenco teórico deixa cristalino qual é o dilema político subjacente, este sim de muito mais difícil solução. Estruturas políticas clientelistas, como disse no início, não têm nenhuma razão para fazer reformas dessa natureza que, ao reduzir drasticamente os incentivos ao clientelismo, desvalorizam radicalmente os valores e atributos dos quais elas se valem para chegar ao poder. Em outras palavras, para os clientelistas, combater o clientelismo com reformas reais e profundas e não puramente cosméticas, corresponderia ao suicídio político. Mesmo a ideia de uma constituinte — afinal um programa de reformas dessa natureza representa um programa constituinte e não apenas reformista — não levaria necessariamente a um plenário programático, imbuído do impulso de erradicar a conexão clientelismo-corrupção. Combater a conexão clientelismo-corrupção não é fácil, nem se resume a uma sumária lista de reformas legais ou à reforma política. Não é uma questão de receita, é uma questão de deliberação coletiva.