O presidencialismo exige algumas qualidades do governante para que ele possa tocar sua agenda obedecendo aos limites institucionais da democracia. Ele precisa ser um bom negociador e olhar o todo, não só as partes. No presidencialismo de coalizão, a capacidade de negociação é essencial para formar a aliança multipartidária e para mantê-la coesa. No presidencialismo americano, essa habilidade é testada mais frequentemente na política externa, atribuição central do presidente. Mas ela muitas vezes precisa ser mobilizada na relação com o Congresso, principalmente na aprovação do orçamento. Estão entre os atributos de qualquer líder, público ou privado, discernimento, equilíbrio, bom senso. Um presidente precisa tê-los na medida suficiente para ter sucesso e manter-se nos limites próprios da democracia presidencial.
O líder democrata no Senado, Chuck Schumer, encerrou a semana de frustrantes conversas com o Executivo em torno do impasse orçamentário dizendo que Donald Trump é um péssimo negociador. Pediu que o líder republicano, senador Mitch McConnell, interviesse nas conversações para que o governo federal pudesse voltar a funcionar, ao menos parcialmente.
O governo está fechado há 14 dias, porque o orçamento para este ano ainda não foi sancionado. À medida que o dinheiro em caixa vai acabando, as agências são obrigadas a fechar as portas. Os funcionários são postos em licença não remunerada, ou ficam em casa sem receber salário. Há 800 mil funcionários nesta situação no momento. A Nasa, fechada, não pôde transmitir o momento histórico inédito, quando recebeu informações da New Horizons sobre o primeiro corpo espacial fora do sistema solar a ser visitado por um artefato humano, o Ultima Thule. A Receita e o Tesouro estão fechados. Em Washington, a repartição que emite licenças para casar também parou de funcionar.
A razão do impasse é a ideia fixa de Trump de construir um muro de concreto na fronteira com o México, ao custo de U$ 5,6 bilhões. A Câmara, agora de maioria Democrata, é contra o muro. A presidente da Câmara, Nancy Pelosi, Democrata, considerou-o “imoral e ineficaz”. Aprovou um orçamento provisório, sem a verba para o muro, de modo a permitir a reabertura do governo, enquanto as negociações definitivas continuam. Trump se recusou a assinar. Pelosi está disposta a passar legislação específica para reabrir a Receita e o Departamento do Tesouro. Por estarem fechados, os americanos não podem fazer a declaração de renda antecipadamente, para receber a restituição com maior brevidade.
Trump tem dado sinais de que pode ceder em outras questões até mais relevantes, para não abandonar sua fixação no muro. Este, desde a campanha era contestado e considerado irrealista. Além disso, os adversários de Trump, inclusive entre os Republicanos, sempre disseram haver outras prioridades para gastar a elevada quantia demandada para construi-lo. Na campanha ele disse que o México pagaria pelo muro. Ninguém acreditou nesta hipóteses fantasiosa.
Agora, Trump quer que o contribuinte pague sua construção. No final da semana, republicanos considerados próximos do presidente aventaram a possibilidade de concessões importantes em relação à DACA em troca do muro. Os conservadores do partido protestaram. DACA é um programa criado por Obama que dá vistos provisórios e renováveis de residência a imigrantes com até 31 anos de idade, que tenham chegado aos Estado Unidos antes de completarem 16 anos. Trump decretou o fim do programa para o dia 5 de março. Não faz sentido negociar uma coisa pela outra. O muro é um símbolo anti-imigração, de absoluta intolerância com os estrangeiros que chegam atrás do inexistente sonho americano. O DACA é uma política de tolerância. Os Democratas não se mostram interessados e os Republicanos mais conservadores são contra. Demonstra a falta de senso de negociação do chefe do Executivo.
Trump, irritado com o impasse, disse que não se importa em manter o Governo Federal fechado por anos se for preciso. Uma declaração que, feita por um presidente, mostra total falta de discernimento, equilíbrio e sensatez. Talvez informado por seus assessores de que isso derrotaria não apenas ele, mas o próprio partido nas eleições de 2020, ele trocou de arma e ameaçou com o último recurso, o estado de emergência. Disse que poderia decretar estado de emergência e construir o muro rapidinho, sem passar pelo Congresso. Caracterizou o muro e a crise de imigração pelo México como uma questão de segurança nacional, de defesa contra o terrorismo. Não há nenhuma evidência disso. Mas o presidente americano nunca ligou para os fundamentos de verdade no que diz.
O pior é que Trump pode mesmo decretar a emergência. As regras lhe dão inteira discrição na matéria. A decisão independe de aprovação do Legislativo e lhe daria poderes quase ditatoriais. Permite, por exemplo, a suspensão do habeas corpus e o uso de tropas dentro no território nacional. O presidente assume poderes praticamente ilimitados durante sua vigência. Franklin Delano Roosevelt recorreu ao estado de emergência, após o ataque em Pearl Harbor, e determinou o confinamento de japoneses e descendentes de imigrantes em campos de concentração durante a guerra. Na vigência do estado de emergência decretado por George W. Bush, após o 11 de setembro, houve tortura de prisioneiros em larga escala.
É compreensível que analistas políticos americanos estejam apreensivos com a resiliência da democracia no país. Trump nunca demonstrou equilíbrio, discernimento, noção de justiça, compreensão dos limites à vontade pessoal do governante, ou bom senso. Tem sido capaz de declarações e ações extremadas. É razoável imaginar que poderia ultrapassar os limites constitucionais da democracia, se investido de poderes quase ditatoriais. Ele tem mentalidade autoritária. Esta já era um dos traços evidentes de sua personalidade, quando fazia o reality show O Aprendiz. Um presidente com mentalidade autoritária, espírito intolerante e irascível, dotado de poderes excepcionais é um perigo para os Estados Unidos e para o mundo.
Puboicado originalmente no Blog do Matheus Leitão, G1.