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O candidato descalço na Presidência do Peru

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Candidato descalço é uma das formas pelas quais se referem a Pedro Castillo, provável próximo presidente do Peru. Com 99,795% das urnas apuradas, ele tem 50,2% dos votos, perto 70 mil a mais que Keiko Fujimori, com 49,8%. Após falar em fraude, Keiko declarou que aceitará o resultado da vontade popular. {Atualização em 10/6: Keiko voltou atrás e ameaçou judicializar o resultado. Em paralelo, o procurador geral pediu a prisão de Keiko por desrespeitar a prisão domiciliar, ainda válida, e entrar em contato com testemunhas. Tudo isso ainda vai dar muita confusão.}  O Peru teve seis presidentes apeados do poder por corrupção. Keiko saiu na frente nas apurações, que começaram pelas urnas de Lima. Mas ficou para trás, quando entraram os votos da Serra e da Selva. Castillo é visto pela população como o único capaz de acabar com a corrupção. Keijo Fujimori, ao contrário, já enfrentou processos por lavagem de dinheiro e corrupção.

Ele tem algumas semelhanças com lideranças políticas populares da América do Sul. Projetou-se nacionalmente ao liderar prolongada greve de professores e ficou conhecido como líder sindical, como Lula. Diferentemente de Lula, porém, sua militância e vida são camponesas e não urbano-industriais. Sua militância foi no sindicato dos professores, na ala que concentra os professores de escolas rurais, como ele. Sua chegada ao poder lembra a trajetória de Evo Morales na Bolívia e Hugo Chávez, na Venezuela. Como os dois, ele chega ao poder ao dar voz às maiorias excluídas de seu país.

Mas, Castillo tem características singulares. Ele é um híbrido, origem popular, com boa formação universitária, visão tradicional de esquerda no campo econômico, forte defesa do fim da pobreza e da desigualdade, e valores comportamentais ultraconservadores e religiosos. Estes últimos resultam da fusão entre as posições de sua mulher, uma evangélica neopentecostal dogmática, e a tradição católica conservadora de sua família. Daí nasce um programa que põe ênfase na educação — seu símbolo de campanha foi um lápis — e na saúde. Na economia, propõe um modelo com descentralização fiscal, “hacia adentro”, voltado para o mercado interno e, prioritariamente, para a produção de alimentos. Seu lema de campanha foi não mais pobres em um país rico.Pretende orientar as ações econômicas e sociais para o desenvolvimento sustentável e as metas do milênio. Quer convocar uma Constituinte para escrever uma nova Carta, que aumente o papel do estado na economia e na sociedade. É contra a igualdade de gênero, o divórcio, o aborto, o casamento LGBT, o que o afasta das lideranças feministas da esquerda, que o consideram um patriarcalista. Castillo defende uma lei para disciplinar o trabalho da mídia, para que ela respeite os valores morais da sociedade.

Castillo tem posições políticas pouco claras. De um lado, parte de suas propostas concretas, como a de censura moral à imprensa, é autoritária. A intenção de convocar uma constituinte preocupa muitos analistas, por causa da experiência venezuelana de usar a constituinte para estabelecer regras antidemocráticas. Seu apoio ao governo Maduro, que considera “democrático”, reforça esses temores. O partido Peru Libre, ao qual é recém-filiado se identifica como de esquerda socialista e orientação marxista. De outro lado, Castillo diz que respeitará as instituições democráticas e já calibrou parte de suas posições mais radicais neste campo, em resposta às críticas que recebeu ao longo da campanha. Uma das candidatas da esquerda, considerada favorita pelas pesquisas de intenção de voto, a antropóloga y psicóloga Verónika Mendoza, disse o seguinte, ao saber do resultado do primeiro turno: “Castillo me provoca muitas dúvidas, todas as dúvidas, e a respeito de Keiko tenho a certeza de que não vou nem até a esquina com ela”.

Foi uma campanha bastante diferente. Castillo percorreu as regiões do Peru a cavalo. Não tem um perfil relevante nas redes digitais. Mas, parte de seu voto foi alavancado por grupos espontâneos de apoio, particularmente no Facebook. Por isso ficou conhecido como o “candidato dos likes invisíveis”. Era o menos conhecido dos 18 candidatos. Surpreendeu a todos, tornando-se o principal concorrente de Keiko Fujimori. Seu voto é rural. O voto de Fujimori concentrou-se na região urbana de Lima e entorno.

Pedro Castillo, o candidato do sombrero de abas largas, é de origem modestíssima. Nasceu em uma família extensa, de nove irmãos. Seus pais, analfabetos, trabalhavam em situação análoga à escravidão, até a reforma agrária decretada pelo general Juan Velasco Alvarado, em junho de 1969. Castillo é professor de uma modesta escola rural, na região que concentra 16 das 20 comarcas mais pobres do país. A inquietação intelectual do menino — que caminhava para a escola escrevendo no ar os deveres de casa, para chegar preparado à sala de aula — era considerada uma esquistice. Os vizinhos diziam que era “transtornado”. A mãe rezava pedindo a Deus que o curasse, até que entendeu que seu filho era diferenciado, muito inteligente, com elevada capacidade de aprendizado e que gostava de aprender. Viveu toda a vida na área rural, mais precisamente na região que une selva e serra, no altiplano peruano. Sua casa é muito simples, como sua vida. Estudou em escolas rurais, até chegar à universidade. Trabalhou no campo para obter recursos e pagar seus estudos. Fez graduação e mestrado em Educação, na Universidade César Vallejo, em Trujillo, que tem reputação de ser inovadora, de boa qualidade e pluralista.

Antes de se tornar professor e líder sindical, Castillo foi um “rondero”. Os “ronderos” são os componentes das “rondas camponesas”, patrulhas comunitárias criadas há mais de quatro décadas em Cajamarca para impedir roubos de gado e até hoje agem para garantir a tranquilidade local. A segurança de Castillo ao longo de toda a campanha tem sido feita por 15 jovens ronderos, de poncho, botas e sombreros, que o veneram e o vêem como um igual que chegará à presidência.

O desafio de Castillo será imenso e as chances de sucesso muito pequenas. Seu partido tem a primeira minoria, mas apenas 24% das cadeiras no Congresso. A representação dos partidos de esquerda será de de 27%, contra um bloco conservador e de direita que deve controlar perto de 73% dos votos. É uma situação de grande risco institucional. O bloqueio de direita pode fazer com que Castillo busque governar por plebiscitos, apelando diretamente à sua base popular para romper os vetos. Mas, a sociedade peruana está radicalmente polarizada e as intenções de Castillo podem se frustrar. O Peru vive um período longo de instabilidade política. Seis presidentes foram depostos por corrupção. As dificuldades de governança são enormes, como também os problemas sociais do país. O país deu a vitória, apertada a Castillo, mas não lhe deu os meios para governar. É muito provável que o resultado seja o impasse.