O mais singular aspecto do primeiro turno da eleição presidencial na Argentina foi o medo do extremismo de Javier Milei superar o desconforto com uma economia que namora a estagnação e está em hiperinflação, fazendo do oficialista Sergio Massa o mais votado. A rejeição a Milei cresceu na reta final da eleição a ponto de fazer eleitores descontentes votarem pelo oficialismo. Além disso, dividiu o voto de oposição permitindo que Patricia Bullrich, embora tenha perdido eleitores, mantivesse boa parte dos votos que obteve nas PASO, as primárias argentinas.
Como decifrar esse eleitor furioso com o statu quo? Primeiro por um voto mais negativo do que positivo. Um voto bronca, que deu 54% à oposição. Segundo, o voto medo, que aumentou a votação de Massa para além das melhores expectativas.
Milei não avançou muito, mais por seus erros do que pelos acertos dos adversários. Na reta final, aumentou o extremismo de suas posições, quando seria hora de modular suas mensagens para ampliar seu voto. Típico da extrema-direita contemporânea. Perde voto, mas não perde a oportunidade de barbarizar. O ápice foi a promessa de romper com o Vaticano, em um país de maioria católica, orgulhoso de ter um argentino como primeiro papa da América Latina e que se prepara para recebê-lo no ano que vem. Ponto para a argentina que se livrou da vitória de um candidato incendiário no primeiro turno, como chegaram a apontar muitas pesquisas e vários analistas.
Os argentinos preferiram o oficialismo com Sergio Massa dizendo que, uma vez presidente, fará diferente do que fez como ministro da Economia. Um estranho caso, definido com bom humor por um analista, no calor da apuração dos votos na noite deste domingo, como um típico caso de síndrome de Estocolmo eleitoral.
Foi, também, um embate entre a velha máquina peronista, ainda operacional, e uma candidatura personalista sem estrutura. Um candidato com a chave do cofre do Tesouro e capaz de manipular preços políticos e decretar feriado bancário para esconder a disparada do dólar, e um candidato acalorado municiado de palavras extremadas. Novamente, ponto para a Argentina que preferiu amargar mais alguns pontos percentuais de déficit e inflação a dar a vitória a um candidato que a ameaça com o colapso social e econômico acelerado.
Mas a máquina não funcionou integralmente. Foi boa com Axel Kicilloff, governador justicialista que se reelegeu com folga na Província de Buenos Aires, e com Massa, colocando-o com uma vantagem de 7 pontos na largada para o segundo turno contra Milei. O partido Justicialista, porém, perdeu quase três milhões de votos em relação à presidencial anterior e várias eleições provinciais. Foi o pior primeiro turno do peronismo nas presidenciais, no período democrático. Entre as províncias em que o justicialismo foi derrotado estão importantes redutos peronistas históricos, como Chaco (16 anos de controle peronista), Chubut (20 anos governada pelo peronismo), San Juan (20 anos governada pelo peronismo), Neuquén (60 anos de hegemonia peronista). Além disso, a coalizão oposicionista Juntos por el Cambio lidera a recontagem dos votos em Mendoza, atualmente governada pelo justicialismo. O peronismo foi também derrotado em Santa Fe e em San Luis, províncias que governava.
Milei oferece mundos e fundos pela extrema direita. Mas é, como o define a mídia argentina, o candidato do caos. Massa promete mudar para fazer diferente do que já fez e oferece governabilidade, impossível numa presidência do adversário. Mas é o responsável pela crise econômica hiperinflacionária e ainda adicionou 2 pontos percentuais de déficit público com os artifícios econômicos que lubrificaram a máquina do partido nas províncias.
A máquina peronista, com a campanha do medo a Milei e um ministro que consegue usar o Banco Central para imprimir dinheiro e distribui-lo nas províncias, conseguiu mobilizar os eleitores com mais de 60 anos que não votaram nas PASO. São quase 7 milhões, 16% da população. Eles se sentem ameaçados pelas promessas de privatização da previdência e da seguridade. Uma significativa porção resolveu votar e dividiu seus votos entre Massa e Patricia Bullrich. A Argentina é um país de demografia madura, com uma idade média de 35 anos, 40% da população têm mais de 40 anos, quase 29% têm mais de 50.
De qualquer modo, é possível dizer que, no primeiro turno, ao contrário do que ocorreu nas PASO, a máquina politica tradicional do partido Justicialista, dos sindicatos e da mídia oficial venceu as redes digitais nas quais se baseou a campanha de Javier Milei. Provavelmente porque a maioria dos eleitores que compareceram a votar no primeiro turno deste domingo e não haviam comparecido às eleições tem mais de 50 anos e é analógica. O eleitorado de Milei é predominantemente jovem e digital. Agora, Milei terá que conquistar os analógicos.
A coalizão Juntos por el Cambio se saiu muito bem nas eleições para as províncias, mas sua candidata às presidenciais foi a maior derrotada. Também se deve considerar como principal derrotado ao ex-presidente Mauricio Macri, ostensivo patrocinador de Bullrich, que foi ministra em seu governo. Ela centrou sua campanha em um inimigo ausente, o kirchnerismo. Este, foi renegado por Massa, ao longo da campanha. Cristina Kirchner, vice-presidente, está às voltas com a justiça e já não tem a influência que teve no passado. Alberto Fernández, o atual presidente desapareceu nas brumas da história antes mesmo da eleição. Ninguém mais fala nele.
A campanha do segundo turno, que ocorrerá em 19 de novembro próximo, será uma corrida atrás dos votos, de Patricia Bullrich, 24% do total, e dos 7% do ex-peronista Juan Schiaretti. Milei diz que a ponte está estendida para Macri. Massa aposta no convencimento dos eleitores da oposição que a Argentina está entre ele e o caos. Ele tem uma vantagem de sete pontos, mas terá que entrar em território oposicionista, de eleitores enraivecidos com a inflação e os descaminhos da economia que ele administra. Milei terá que convencer ao conservadorismo liberal moderado que não será um presidente incendiário e demonstrar ao eleitorado católico que receberia o papa de braços abertos.
Os dois terão que provar aos eleitores que não serão quem são. Um belo desafio para os marqueteiros. Vencerá o que conseguir convencer mais eleitores.