A Itália foi novamente empurrada para a beira do abismo por um populista de mentalidade autoritária que deseja ardentemente o poder. Matteo Salvini, após um show pessoal de férias de verão pelos resorts de praia mais exclusivos da Itália, rompeu a coalizão com o antissistema M5S. Quer derrubar o governo, no qual é primeiro-ministro adjunto e o mandão central, para provocar eleições imediatas. As pesquisas indicam que ele pode vencer. Salvini é um político autocentrado, que manipula a opinião pública e põe a ambição de poder acima de tudo, principalmente dos interesses coletivos da Itália. Um eurocético, de ultradireita, que arrisca mergulhar o país em nova crise, prometendo retirá-la da armadilha do baixo crescimento na qual se encontra a anos, que ele atribui às exigências da União Europeia. Todo mundo sabe que ele não arriscaria deixar o Euro e retornar à lira, nem romper com a UE. As pesquisas dão 38% a seu partido, insuficiente para fazer a maioria do parlamento. Sua infidelidade com o M5S talvez lhe crie dificuldades para encontrar aliados para uma coalizão sob sua liderança. O M5S pode tentar uma aliança pela esquerda, com o novo líder do partido Democrata, Nicola Zingaretti, governador da região do Lazio, eventualmente com Luigi di Maio, hoje também primeiro-ministro adjunto, na cabeça e neutralizar a jogada de Salvini. Os social-democratas, que acabaram de se livrar do ex-primeiro-ministro impopular Matteo Renzi, talvez prefiram a aliança a entrar em uma nova eleição a apenas um ano e meio da anterior.
Meu interesse não é tanto em Salvini, mas em dois pontos que emergem de sua atitude. Se ele tiver sucesso em provocar eleições antecipadas e ganhar o governo, levará à interpretação de que a onda populista de direita continua a varrer o mundo. Esta convicção será fortalecida pela reação eufórica de personalidades controversas como Trump, Putin, Orbán e Bolsonaro. Não creio que a onda populista esteja ainda na montante. Vejo mais sinais de refluxo. Mas, são muitos os oceanos históricos, para recorrer a uma expressão do Roberto DaMatta em sua coluna de quarta (7). Em uns, a onda pode não ter quebrado ainda; em outros, já se sabe que ela não passa da ilusão de um swell perfeito.
Salvini é quase um tipo ideal do populista autoritário. Voltei a pensar neste tipo de personalidade ao ler a bela coluna de Thiago Amparo, na Folha de S.Paulo de sábado (10) sobre o novo livro do especialista em Shakespeare Stephen Greenblat, Tirano: Shakespeare sobre a política, ainda sem tradução. Greenblat retira lições políticas da literatura do autor elisabetano, principalmente sobre a tirania. São ambas ótimas leituras, a coluna e o livro. Greenblat relê as peças de Shakespeare em busca de reflexões políticas apropriadas ao presente e tem um bom argumento para justificar a atualidade de sua obra. Shakespeare se tornou um mestre na dissimulação ao escrever em um momento de muita censura, imposta com a ameaça à própria vida. Seu truque principal era deslocar a trama no tempo e no espaço para a Itália, para uma ilha imaginária, ou para o passado remoto da Inglaterra. Este deslocamento espaço-temporal acobertava a nada acidental coincidência com os eventos do então reinado de Elisabeth I. A análise fascinante de Greenblat sugere fortemente que essa atemporalidade dá ao texto shakespeariano uma qualidade analítica transcendente. Ela ajuda no entendimento de eventos políticos de qualquer época, que se enquadrem no território da polarização, do ódio político, do populismo e da tirania.
A trama da trilogia de Henrique VI, por exemplo, tem como fundamento sociológico a polarização política que permite realizar a ambição do poder e faz prosperar o populismo. É sobre esta fundação que se ergue o governo tirânico. Ela nasce do desinteresse em chegar a um acordo, da certeza beligerante de que só o seu lado está certo. Não há terra do meio, nem a admissão de que é possível que duas pessoas ou dois grupos possam discordar, sem que isso leve a uma guerra de ódio. Shakespeare constrói uma narrativa na qual a oposição se estende à sociedade, dividida pelo ódio recíproco em duas partes. “Ou você está comigo, ou está contra mim” é a lógica que determina o curso da tragédia.
Nesse terreno intoxicado, surge a extraordinária versão shakespeariana de Jack Cade, o populista líder de uma rebelião que, se vitoriosa, poderia leva-lo ao poder. Cade é um personagem que conhecemos bem nas repúblicas sitiadas de hoje. O populista que queria ser rei. Na leitura de Henrique VI, guiados pela lupa de Greenblat, vemos que todo populista tem um componente de fraude e um forte desdém pela lei e pelas instituições. Ele encanta com promessas vãs a multidão descontente e ressentida, imersa no ódio do outro. Como o Prometeu de Ésquilo que, ao reconhecer ter ido longe demais em suas transgressões, explica ter disseminado “esperanças vãs nos corações de todos”. Cria falsas esperanças para realizar suas próprias e pessoais ambições. Na peça, Cade diz para queimarem todos os registros do reino, porque “minha boca será o parlamento”. Essa intolerância do populista autoritário, esse desejo de um governo unilateral, por decreto, está presente em mais de um país atualmente. Para respaldar o avanço autoritário em casa, eles buscam similares fora e a eles se aliam, ao mesmo tempo que apontam inimigos imaginários. É o que vislumbra a rainha Margaret, ao perguntar como podem os tiranos governar com segurança em casa, se não comprarem grandes alianças fora?
Há nessa leitura de Shakespeare um personagem fundamental para se entender, principalmente nas repúblicas, a possibilidade do encontro entre o populista, o tirano e o poder em uma só pessoa. É a personagem-chave da tragédia. Sabe que o populista mente, é venal, egocêntrico e cruel, nem por isso deixa de segui-lo na esperança vã de que o seu interesse se realizará, embora os de outros sejam traídos. É esta ilusão de que “o meu está salvo, os outros que se virem” dos seguidores que dá aos populistas a sua chance de poder. Greenblat chama esse personagem anônimo, coletivo de “viabilizador”. Ele reconhece a vilania de Ricardo III, sabe que ele é um mentiroso patológico, mas tem a estranha propensão ao esquecimento, cede à tentação irresistível de normalizar o que não é normal. Os “viabilizadores” se convencem reciprocamente de que tudo dará certo ao final.
É na garimpagem do texto de Ricardo III que Greenblat encontra maduros os traços definidores da personalidade autoritária. O interesse pessoal acima de tudo, o desprezo pela lei e pelas instituições, o desejo compulsivo de dominar, o prazer em ofender e causar dor aos outros. Uma compulsão de poder que inclui explicitamente a dominação da mulher. O autoritário não tem lealdades, tem sempre o impulso de mostrar-se acima de qualquer um, vê-se como o único exemplo das boas escolhas e do pensamento correto. Espera lealdade absoluta, mas não é capaz de gratidão, não tem decência. Divide o mundo entre ganhadores e perdedores e se julga portador de um direito absoluto de realizar a própria vontade. Este é Ricardo III, o arquétipo do tirano.
Ao rever, junto com Greenblat, as passagens políticas de Shakespeare das quais sai esse retrato de corpo inteiro do populista autoritário, lembrei-me de um artigo da professora de filosofia da universidade de Cincinatti, Heidi Maibom, que se dedica a entender os mistérios da empatia. O psicopata, ela diz, é alguém quase igual a nós. Só que não. Seguramente, o Ricardo III de Shakespeare e Hitler eram psicopatas. Há outros por aí. Sabem distinguir o bem do mal, a mentira da verdade. Mas, integram mal os vários elementos das boas escolhas. Ignoram as informações envolvidas na decisão, mirando compulsivamente no que desejam fazer em cada momento. Desprezam as incoerências, os conflitos com outras decisões e as consequências futuras. Decidem por impulso. São até capazes de empatia, mas a inibem para poder realizar o que pretendem.
Nenhuma peça de Shakespeare termina bem para os tiranos. Há boas razões para essa marcha insensata para a tragédia. E não é o fatalismo que se presume, erroneamente, compor as tragédias literárias. Talvez seja por causa dessa capacidade de explicar o quase inexplicável, de revelar a todos que o anormal nada tem de normal, nem o intolerável de tolerável que a literatura irrite e amedronte tanto as mentes autoritárias, sempre em busca de uma maneira de censura-la.
Quem quiser tomar os traços da personalidade de Ricardo III e procurar os governantes do mundo que mais se assemelham ao arquétipo, garanto que colecionarão um punhado de nomes.
Publicado originalmente no Blog do Matheus Leitão/G1