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A democracia não convive com o silêncio

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As multidões nas ruas do Reino Unido são um alívio. Estão protestando contra o uso dos costumes e das leis pelo primeiro-ministro para atacar a democracia. A prorrogação do parlamento é uma prerrogativa legal. Mas da maneira como fez Boris Johnson, em minoria no parlamento, com o objetivo de calar a maioria que não deseja a saída da União Europeia sem negociação (no deal Brexit), não é legítimo, nem democrático. Boris Johnson está a empurrar o regime para o terreno autoritário. Os britânicos não aceitaram calados. Nas ruas, pedem que se impeça o atentado contra a democracia e que fale o parlamento. Querem eleições para renovar um quadro político que se exauriu ainda na gestão de Theresa May.

Em Hong Kong, o povo desafia o regime autoritário chinês, que dispõe tropas para ameaçá-lo e escala a repressão, com prisões e violências. Mas, a sociedade não aceita calada a progressão da incorporação de Hong Kong ao imperium chinês, que pressupõe o fim da democracia na ilha. O modelo político instalado por Xi Jinping é uma espécie de síntese entre duas formas autoritárias o confucionismo e o maoísmo.

Na Itália, que vive um furdunço político há anos, a tentativa de Matteo Salvini de usar as regras da democracia contra ela foi aparentemente abortada pela disposição do Partido Democrático em negociar um governo alternativo com o Movimento 5 Estrelas. A união contra o inimigo comum parece que levará à superação das divergências entre o antissistema e o pós-comunista para interromper a tentativa antidemocrática da extrema-direita. Nos Estados Unidos, intelectuais, acadêmicos e povo nas ruas alertam contra as inclinações autoritárias de Donald Trump.

Nestes países, a sociedade não se cala diante do oportunismo populista que usa as liberdades democráticas para distorcer suas regras contra o próprio regime. A democracia convive mal com o silêncio. Silenciar, diante desse escorregar para fora das regras e da cobertura institucional da democracia, é capitular às pressões autoritárias por medo ou conveniência. O silêncio é a forma conveniente do conformismo. A democracia está em risco em todo o mundo. Está acuada pelas transformações estruturais da grande transição global que provocam demolições, antes do acabamento do que se está a construir.

O individualismo autorreferencial torna-se defensivo na sociedade de risco, onde os indivíduos estão por conta própria. Eles preferem calar-se ou acreditar em soluções retrógradas, que começam por interromper a democracia com a promessa de estancar as mudanças que ameaçam tanto. Quem rompe o silêncio é porque ainda não perdeu o referencial coletivo. Ainda acredita em um mundo no qual as pessoas, dando-se as mãos, conseguem mover montanhas.

É muito grande o número de analistas a escrever e dizer que há riscos iminentes e concretos para a democracia, em quase todos os países democráticos do mundo. Pode-se ficar a discutir se as explicações desses analistas estão certas, se seus modelos se comprovam, se escolheram os melhores indicadores para os fatores de risco. Um exercício acadêmico necessário, mas cujo prazo não coincide com as urgências do tempo em que vivemos.

Até que cheguemos ao melhor modelo explicativo, as democracias já podem estar quase todas em recesso forçado. Diante da premência deste momento de processos vertiginosos, que envelhecem jornais ainda na rotativa, tornam tuítes obsoletos em questão de segundos, prefiro ater-me ao impressionismo. São tantas as boas cabeças impressionadas com a possibilidade de recessão da democracia, que prefiro partir da premissa de que o perigo existe e é real. Portanto, não é hora de calarmos e nos debruçarmos nas pranchetas de análise para destrinchar a teoria e a metodologia dos alertas. O silêncio pode ser o ingrediente que acelera o colapso das liberdades.

As praças sem povo não passam de sítios para dispor estátuas de heróis que nem sempre revelam a melhor parte da história das sociedades. O povo nas praças e nas ruas é o estímulo necessário para que lideranças responsáveis levem a sério os alertas que indicam focos de ataque às instituições. A transição como crise é um momento de alto risco. Requer mais atenção aos mínimos sinais de retrocesso. É melhor dizer nas ruas que a democracia está a ser golpeada, do que esperar para soar o alarme quando as suspeitas se tornarem certezas e já for tarde demais.

 

Publicado originalmente no Blog do Matheus Leitão/G1