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A força de uma ideia

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Um país sai da guerra dividido, em crise, mergulhado em desigualdade crescente. Um líder populista emerge das sombras. O governo democrático abraça as ideias mais avançadas da época, um momento de enorme riqueza intelectual e artística. Grandes escritores, filósofos de ponta, inovadores de toda sorte abrigam-se no clima de liberdade e abertura. Discute-se de tudo, em todos os lugares. As ideias políticas como sufrágio universal, igualdade de gêneros, o futuro do trabalho e dos trabalhadores, a possibilidade de construir um novo mundo, livre do domínio aristocrático, a participação popular, circulam amplamente. Era uma república premonitória, mais que uma realidade em si. Isso aconteceu há 100 anos na Alemanha. A República de Weimar nasceu em 1919, numa nação derrotada na Primeira Guerra, assolada pela hiperinflação, mas sonhando com o futuro. Mais que sonhar com o amanhã, gerou as ideias que permitiram construir o futuro em todo o mundo.

Basta escrever alguns nomes, para se ter a noção da riqueza cultural e da importância de Weimar – o poeta e teatrólogo Bertold Brecht, o movimento revolucionário de design e arquitetura Bauhaus, o psicólogo Wilhelm Reich, os filósofos Ernst Cassirer, Martin Heidegger, Karl Jaspers, Walter Benjamin e Max Horkheimer, a atriz Marlene Dietrich, o cineasta G. W. Pabst, de A Caixa de Pandora, os escritores Thomas Mann e Herman Hesse, os compositores Arthur Schoenberg e Kurt Weill, o pintor Paul Klee. Weimar nasceu como a mais livre das repúblicas de sua época. Projetou a ideia da “nova mulher”, politicamente ativa, dona de sua própria vida, que está na raiz do movimento feminista dos anos 1960. Hannah Arendt, a extraordinária figura do após Segunda Guerra, formou-se em Weimar.

O historiador Peter Gay escreveu que Weimar foi uma ideia buscando se tornar uma realidade. A República de Weimar morreu, oficialmente, em 30 de janeiro de 1933, quando o presidente Paul Von Hindenburg nomeou Adolf Hitler como chanceler da Alemanha. Weimar era a república do movimento trabalhista, da “nova mulher”, da construção da rede de proteção social. Elsa Hermann escreveu, em 1929, que a mulher moderna se recusa a ter uma vida de dama e dona de casa, preferindo sair da trajetória predeterminada e fazer seu próprio caminho. Essa visão da nova mulher espelhava, de muitas maneiras, o ideal da república nascente. Weimar foi uma realidade enquanto durou, mas não encontrou sua realização definitiva no período em que existiu concretamente, como ideia e como governo.

Weimar caiu para vencer. Foi no após-guerra, com a derrota de Hitler e da extrema-direita alemã, que as ideias de Weimar mostraram sua força real. O contraste com a Alemanha do Führer era eloqüente demais. Sua constituição serviu de base e inspiração para a constituição da Alemanha contemporânea. O sonho de Weimar alimentou o avanço social-democrata europeu após a Segunda Guerra. O centenário de Weimar não celebra uma república politicamente inviável, que durou apenas 14 anos. Comemora a força vitoriosa das ideias progressistas do século 20. O ideal de liberdade, justiça e igualdade de direitos que animou a avassaladora onda de democratização nos anos 1950, 1960 e 1970. O movimento da história mostrou o poder das ideias sobre a força das armas. O fim de Weimar, foi o começo de sua vitória, o maior legado cultural do século XX.

Vivemos globalmente momento turbulento, de grandes transformações que, mais uma vez, criam espaço para as promessas vãs dos populistas. Mais que uma coincidência temporal é uma oportunidade para relembrar a história paradoxal de uma república que viu seu sonho democrático se tornar realidade no desdobramento de sua própria derrocada.

Publicado originalmente no Blog do Matheus Leitão/G1