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Notre-Dame Lumière du soir - Albert Lebourg

Notre Dame de Paris: eu não vou dizer adeus

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A catedral de Notre Dame em chamas é uma tragédia terrível, como a definiu a prefeita Anne Hidalgo. A Notre Dame é um patrimônio da humanidade, uma herança góticas inestimáveis, cuja carga cultural e moral transcedeu em muito sua história factual. Virou o ícone épico de uma era, nas penas de Victor Hugo, em Notre Dame de Paris. É quase uma visão no desenho de Marc Chagal, Notre Dame en gris. Vista da calçada, por Rafaelli ou estilizada, por Utrilo, a catedral inspirou, enlevou, acolheu escritores, pintores, poetas, pessoas. Nenhum deixou, jamais de se emocionar.

A primeira vez que visitei Paris, na minha juventude, fiquei hospedado no melhor quarto do Hotel Esmeralda, 4, rue Saint Julien Le Pauvre. Recomendação de Adam Przworski, a quem havia conhecido alguns anos antes, na Flacso, no Chile de Allende. Disse-me que tinha preços razoáveis e um valor inestimável. As janelas do quarto se abriam para a catedral de Notre Dame. Pelos quinze dias que fiquei no Esmeralda, em nenhuma das várias vezes que me debrucei naquela janela, deixei que me maravilhar com a visão da Notre Dame, ao amanhecer, ao pôr do sol, à noite. Paris e a Notre Dame ficaram indelevelmente ligadas na memória de minha alma. Nenhuma imagem me faz sentir Paris mais que a da Notre Dame.

No romance de Victor Hugo, Esmeralda é a garota adolescente que dança pelas ruas de Paris e tem destino trágico, que Quasimodo tenta salvar em vão. O romance inesquecível de Victor Hugo, Notre Dame de Paris, renomeado posteriormente para O Corcunda de Notre Dame, voltou-me inteiro à mente, ao ver a torre principal da catedral ruir entre as chamas. Como doeu, aquela riqueza artística imensa, singularíssima, destruída pelo fogo implacável. A palavra esculpida na parede significa destino, escreveu Hugo. Que destino terrível, inimaginável pelo exímio ficcionista, sempre atento à História, teria a grande dama gótica de Paris, no seculo 21!

Mas, será o fim? Em 1829, a Notre Dame, transformada em fábrica de pólvora durante a Revolução Francesa, sofreu grande destruição. Pois não foi para conclamar a nova França a salvar a velha, expressa naquela catedral imorredoura, que Victor Hugo pôs-se a escrever? Seu romance, acolhido pelo povo, animou a mobilização dos esforços para a restauração a Notre Dame.

Ela é o foco central do romance que teve seu nome por título originalmente e esta é a marca da maestria narrativa de Hugo. O enredo se constrói a partir da arquitetura da catedral e a força moral da Notre Dame sobressai-se majestosa, mesmo diante de personagens inesquecíveis como Quasimodo, a jovem Esmeralda e o sinistro arcebispo de Paris, Claude Frollo. Daí haver mais que um laço íntimo entre Quasimodo e a igreja, “uma espécie de misteriosa e preexistente harmonia entre essa criatura e esse edifício”. Precisaremos de outro autor para mobilizar Paris e o mundo para salvar a Notre Dame dos escombros?

Ou nos basta Victor Hugo com seu tamanho e sua imortalidade? Ainda hoje o Corcunda de Notre Dame leva multidões ao teatro, quase esquecidas de que a Notre Dame é um monumento plantado no coração de Paris e sua obra um romance-símbolo da história da França e sua Revolução.

Imagino que uma pessoa que tenha lido o romance e estivesse em frente à catedral em chamas, talvez se lembrasse do que o Hugo escreveu sobre sua fachada:

“Vasta sinfonia de pedra, por assim dizer, obra colossal de um homem e de um povo, ao mesmo tempo una e complexa como as ilíadas e os romanceros, dos quais ela é irmã, resultado prodigioso da união de todas as forças de uma época. Sobre cada pedra, de cem maneiras se vê brotar a fantasia do artesão disciplinado pelo gênio do artista. Resumindo, é uma criação humana poderosa e fecunda como a criação divina, da qual parece ter copiado a dupla característica: a variedade e a eternidade.”

A vitalidade da Notre Dame, entretanto, não está na sua arquitetura esplêndida, ou na arte deslumbrante e abundante no seu interior, nos afrescos, pinturas, escultura, vitrais. São destrutíveis e restauráveis. Está nos sentimentos poderosos que esta arte em nós provoca. Como escreveu Victor Hugo, “o que conta, não é a reprodução dos acontecimentos reais, históricos, mas a das paixões humanas elementares, o medo, a coragem, a vontade de poder, a abnegação, o instinto de morte, o amor”.

Notre Dame é o coração de Paris e é de todos nós, os que fomos a Paris e a amamos, e os que não foram, mas podem amá-la assim mesmo. Victor Hugo resumiu “o homem, o artista e o indivíduo se apagam nessas grandes construções sem nome de autor; a inteligência humana nelas se resume e se totaliza. O tempo é o arquiteto, o povo é o pedreiro.”