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Sobre fins e começos

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Morgana, a personagem do livro “As Brumas de Avalon”, diz que sabe mais de fins do que de começos. Todos estamos sabendo mais hoje de fins do que de começos. Vivemos, mundo afora, de crise em crise. A economia rateia no mundo todo. Os economistas têm sido surpreendidos por eventos cada vez menos ajustados a seus modelos. O imprevisto está se tornando o novo normal. A ideia de equilíbrio é cada vez mais ilusória. Os politólogos são surpreendidos por eleições fora da curva. A democracia engasga. Os sistemas políticos se fragmentam. As categorias sociais que organizavam o conflito social definham. Desorganizam-se a sociedade, a economia e a política.

Morgana confessava, naquela frase, sua impotência diante do fim do mundo que conhecia. Saber sobre o desmoronamento não ajuda muito na solução dos problemas emergentes. Lançar mão de expedientes que se tornaram disfuncionais apenas gera mais descrédito e mais inquietação. Por isso cresce o número de analistas respeitáveis — economistas, sociólogos e politólogos — a denunciar a obsolescência dos paradigmas dominantes de análise e previsão e a necessidade de pensar fora da caixa. Lançar mão de novas ideias e prestar atenção em formas e modos emergentes, que andam a apontar rumos possíveis para o futuro.

As grandes transformações estruturais, que revolucionam os fundamentos mais profundos da organização social, se manifestam primeiro como crise. Na verdade, um longo ciclo de crises sucessivas e abrangentes, que fragmentam a sociedade, desestabilizam ou paralisam as economias e desacreditam a política. Mas o movimento da história mostra que essas crises, provocadas pela associação de disfunções do velho organismo socioeconômico com inovações disruptivas que demandam radical adaptação desse organismo às novas condições macro e micro ambientais, têm enorme potencial positivo. Aqueles que se debruçam sobre esses começos para tentar entender os novos processos e a nova lógica de movimento da sociedade são encarados, de início, pelo establishment acadêmico, científico e intelectual, ora como irresponsáveis, ora como inconvenientes. Pesquisar o que morreu ou está morrendo é importante. Mas a tarefa necessária é entender o que está nascendo.

Esses momentos de transição, nos quais a demolição anda mais rápido do que a construção, são de incerteza, pânico, atitudes extremadas e preconceito. Videogames são vistos como agentes do aumento da criminalidade. Transformam jovens em chacinadores sanguinários, que vão à escola matar ex-colegas, depois de assassinar a família. Esse preconceito diz, até com tinturas de expertise, que games e redes sociais estão a destruir a sociabilidade das crianças, criando nelas dificuldades de concentração e aprendizado, induzindo a comportamentos afetivos e sexuais indesejados. Nessa visão, as redes teriam se tornado um instrumento de ódio e destruição da democracia. Essas opiniões não encontram apoio em evidências. Desconsideram a majoritária contribuição positiva das novas tecnologias. O efeito educador, de estímulo ao raciocínio estratégico e à interatividade dos games. Os milhões que jogam e não se tornam matadores jogam e aprendem, interagem e crescem afetiva e intelectualmente. Descartam a contribuição das redes na criação de espaços de discussão pública criativa e produtiva, de troca de conhecimento e experiência, de mobilização para a ação política e para o exercício da solidariedade.

Como agora, em relação a Moçambique, o Zimbábue e Malaui. Em Moçambique, Beira, a segunda maior cidade do país, foi destruída pelo pior desastre climático registrado até o momento, com milhares de desabrigados e talvez um milhar de mortos. As redes de solidariedade se formam com rapidez, cuidam de disseminar a informação que a grande imprensa despreza, focada nas agruras das potências e sem olhos para os dramas dos mais fracos. Do mesmo modo, as redes de indignação e esperança, como as chamou o sociólogo Manuel Castells, chamam a atenção para a falência das oligarquias, o encurtamento da representação democrática, a ausência de lideranças olhando para a frente e tentando dar respostas novas às necessidades estruturais do povo.

Enquanto as esquerdas vacilam e se enroscam em velhas ideias, a direita avança. O estiolamento da esquerda fortalece o pensamento antidemocrático e abre caminho para as direitas. A direita aprendeu a ocupar esse espaço vazio e prosperar nele. Mas não se sustenta, porque se perde em nanopreocupações, como Trump com seu muro, e Bolsonaro, com cartilhas de educação sanitária e sexual, ou não tem mais o que oferecer, senão um novo ciclo de austeridade. Acabam por abrir caminho para os iliberais. As esquerdas e as direitas se tornaram igualmente reacionárias. Agarram-se a ideias do passado, irrealizáveis no presente e inúteis no futuro. São movidas por visões irreais do passado, como algo desejado, ao qual se deve retornar, ou muito desprezado, do qual se deve fugir a qualquer custo. Fazem economia e política com os olhos nas aflições do dia. Mas o presente está cada vez mais prenhe de futuro e mais vazio de passado.

Lideranças efetivas não olham para trás exceto para aprender com os erros. Olham para frente, para não caírem nas fissuras que vão se abrindo no caminho para o futuro, que será radicalmente diferente do mundo que vivemos. Há muitos pontos de vista para olhar esses começos e pensar em novos modos. Esses tempos de transformação muito rápida e muito abrangente abrem inúmeras possibilidades. Tudo está em aberto. Mas é preciso andar mirando longe, para alcançar esse amplo horizonte à frente. Estudar os fins é relevante. Entender os começos é necessário.

Publicado originalmente no Blog do Matheus Leitão/G1