Uma vacina necessária e carregada de significados simbólicos

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Ontem eu me vacinei. Coronavac. Fruto da excelência de uma instituição pública. Não a devemos a governo algum. Diria a mesma coisa, se tivesse tomado a Oxford/AstraZeneca. Butantan e Fiocruz são instituições públicas de pesquisa de ponta e indispensáveis ao país. Uma questão de autonomia estratégica, como estamos vendo.

A aplicação da vacina depende de outra instituição pública que está abandonada há muito e tem sido vítima das políticas de austeridade. Políticas de ajuste fiscal incapazes de distinguir prioridades coletivas essenciais e, portanto, de resguardar seu espaço no orçamento. Os subsídios ao capital ultrapassam de muito o valor necessário para reerguer o SUS. Uma política fiscal decente, com algum lastro moral, reservaria montante suficiente para que o sistema público de saúde cumpra suas funções essenciais de atendimento à população.

O posto em que fui vacinado era amplo, bem atendido, muito bem organizado. Sem filas, atendimento eficiente e rápido. Ponto para o SUS. Sem ele, não estaríammos sendo capazes de vacinar a população. A vacinação não avança porque o governo não quis comprar vacinas, negou sua eficácia. Só mudou muito recentemente de posição, por pressão e pela indignação social com mais de 300 mil mortes, hospitais lotados, falta de insumos básicos para intubação e oxigênio. O SUS tem capacidade de vacinar um milhão de pessoas por dia. Já fez isso no passado.

Já tomei muita vacina em minha vida. As mais recentes foram para para febre amarela — para ir à África do Sul — e antitetânica, por causa de um pequeno acidente com uma faca, na reserva de Mata Atlântica, em área rural, que mantemos. Todas elas, eu tomei como rotina. Esta, não.

Tomei a vacina, com sentimentos conflitantes. Para mim, é um passaporte para a vida. Uma esperança de me livrar da agonia de uma forma grave da Covid-19. Seria para comemorar. Mas, dois de meus filhos tiveram Covid e correm o risco de reinfecção. Rodrigo, um deles, me levou até o posto, para fazer a foto para a família ver. O terceiro estava no quinto dia da doença e eu me vacinando. Senti o travo amargo da injustiça dessa situação. Não vou comemorar. Só celebrarei quando todos com mais de 16 anos estiverem vacinados no Brasil.

Restarão as crianças. Tenho quatro netos. Quero-os vacinados. Espero que o mais breve possível haja vacinas para eles. Haverá, com certeza. Algumas já estão em testes. Vacina é um bem público. deve estar disponível para todas as pessoas, independente de idade, etnia, gênero, renda ou qualquer outro atributo categórico.

Saúde é um bem público. Quando é tratado como bem privado, deixa a população indefesa, diante de situações como esta pandemia. As mortes em Nova York, na primeira onda da Covid-19, foram tantas porque a medicina é toda privada. Hospitais privados investem em medicina de ponta e um dos objetivos é minimizar a necessidade de UTIs e reduzir o tempo de permanência nelas, quando necessário. UTIs são muito caras. Reduzir seu uso diminui custos e aumenta o lucro. Por isso, o número de UTIs não era suficiente.

A atitude irresponsável de Bolsonaro e seu governo, além de deixar a população vulnerável e causar muito mais mortes, ao provocar escassez de vacinas, aumentou demais a injustiça e a desigualdade. Meu posto estava tranquilo e sem filas. Um posto para classe média e alta. Os postos que atendem mais às classes de mais baixa renda, têm filas grandes e menos organização.

Vivemos um momento de agonia coletiva. Agonia de muitos, que podem perder a vida por falta de atendimento adequado. Agonia de todos, aflitos e com medo desse inimigo invisível, que nos colhe de surpresa e nos pega completamente indefesos. Uma doença sem remédio, altamente contagiosa e que se espalhou por toda a população nos deixa a todos desamparados.

O desgoverno, a ausência total de compaixão e o desprezo absoluto de Bolsonaro pelas vidas dos brasileiros e pela tormenta em que vivem por sua culpa, apaga o horizonte do Brasil. É difícil ter esperança em um país desgovernado, com os hospitais desguarnecidos.

Teremos muito que reconstruir, depois que nos livrarmos de Bolsonaro. Mas, as vidas perdidas, não têm reparação. As dores pelas perdas persistirão. O trauma marcará todas as gerações presentes. Espero que, pelo menos, entendam o custo enorme de uma escolha tão insensata quanto a de eleger Bolsonaro.

A vacina é um passaporte para vida e é um ato de resistência. À autocracia ilegítima de Bolsonaro. Ele não foi eleito para isto. Vacinar é uma afirmação política de rejeição ao negacionismo, à hiprocrisia de Bolsonaro e ao autoritarismo. A reafirmação da opção pela vida. A vacina traz um sopro de esperança para uma sociedade desesperançada. Ela vacina o nosso organismo, mas ajuda também a nos imunizar dessa ameaça autoritária.