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A festa do segredo revelado

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Onde voto são várias zonas e numerosas seções abrigados em um colégio católico de classe média alta na Zona Sul do Rio de Janeiro. Estava lotado. Lá votam ricos, classe média e periferia, principalmente Rocinha. Ricos de cara amarrada, os outros sorridentes. Uma tropa de motociclistas parou as motos ostensivamente em linha e desfilava com seus capacetes e suas caraduras. Não intimidaram ninguém.

O espectro social é realmente plural. Pessoas negras em muita quantidade, a maioria vinda da Rocinha. Pessoas brancas típicamente de classe média e as ricas ostensivamente ricas, descendo de SUVs Volvo e BMW. As três pessoas na minha frente trocavam impressões desalentadas sobre estarem na fila do SUS e não conseguirem fazer exames pré-cirúrgicos ou diagnósticos. Eis que passa por mim um casal muito conhecido, do topo da elite carioca, discreto, sós, sem ostentação.

A garota negra, que estava umas dez posições à minha frente na fila, vai votar. A mãe já havia voltado e a esperava. Quando termina seu voto, vem para a mãe improvisando um funk, dançando e cantarolando baixinho, “vai dar Lula, lá vem ele de volta”. Sorri para ela. Fazia discretamente, mas com evidente alegria, a festa cívica de poder dizer ao mundo branco que ela pode fazer diferença.

A moça com crachá me pergunta, o senhor não é prioridade? Respondo, tenho idade, mas não PRIoridade. Ela não entendeu bem. No país dos privilégios, até muitos que não os têm, não atinam com a desrazão da vantagem imerecida. Várias pessoas com idade recusaram furar a fila como prioridade. Um dia o Brasil aprende a recusar privilégios indevidos. Muita gente jovem e idosa para as quais o voto é voluntário votou.

Percebi dentro do colégio — exato, voto em um colégio, cujo nome e endereço sei muito bem e no Rio falamos colégio, já em São Paulo,,, — dizia que percebi já dentro do colégio, onde se formavam filas bem volumosas, várias pessoas negras, principalmente jovens, a maioria garotas, com a camisa do Flamengo e um sinal discreto identificando-as como eleitoras do Lula. Faziam oposição a Bolsonaro e à diretoria do time que o apoia acima de tudo e a despeito de todos os torcedores que na maioria não o querem no poder.

Na fila ao lado da minha, uma garota negra com jeito de surfista e cabelos oxigenados, cumprimenta um garoto negro de cabelo afro que sai da urna sorridente e com passos de funk. Ela ri, eles se cumprimentam. Ele vestia camiseta branca e bermuda preta. Ela vestia camiseta do Flamengo, com o número 13 nas costas e bermuda jeans. Ambos calçavam chinelos havaiana.

Deixei o colégio e, para meu desgosto, um motofascista passa na sua Haley Davidson, com duas ostensivas bandeiras do Brasil, que o Duce tropical sequestrou. Mas fui consolado por dez, contadas no dedo, meninas descendo da Rocinha com adesivos de Lula. Tudo muito discreto. Ninguém revelava o voto ostensivamente. Os bolsonaristas carrancudos. Os outros, sorridentes. Não é voto envergonhado. É um voto discreto,  no segredo da urna, e compartilhado por códigos que todos entendem. Um sóbrio compartilhar de um desejo comum.

Foi a festa do segredo compartilhado. Exceto, claro, as meninas da Rocinha que fizeram questão de dizer a que vieram. E não falo isso pode sexismo. É porque só elas sentiram necessidade de dizer claramente de que lado estão. Compreensível após todas as agressões de Bolsonaro e seus acólitos contra pessoas como elas. Mas era possível saber o voto de cada um pelos olhares cúmplices, pelos sorrisos discretos, pelo andar mais leve. Ou, pelas carrancas, pelas roupas e jóias. Sério, quem vai votar com jóias?

Vi ultraliberais claramente abandonando Bolsonaro. Tipo agora estamos juntos, amanhã nos separamos. Vi muita coisa nessa beve caminhada de duas horas pelo terreno da democracia viva. Foi bom, revitalizante. As urnas falarão em breve. Espero que cantem um canto de vitória da democracia e da sensatez. Que sejam eloquentes em busca da concórdia em nome dos valores inegociáveis da gente humana e do cuidado maior com as suas partes mais necessitadas. Só um nome não expressa esse desejo. E um deles o expressa majoritariamente, pela vontade plural e ampla, inclusive de brasileiros que nunca o escolheram antes.

Espero que as urnas nos restituam o direito de dizer Brasil, com orgulho e em voz alta, em qualquer parte do mundo. Que nos devolvam nosso hino e nossa bandeira e o direito de discordar em paz.