O tamanho da vitória não se mede em votos, mas pela dimensão do desafio e pela dificuldade da travessia. O tamanho do vencedor não se mede pela pequenez do adversário, mas pela grandeza com que o vencedor recebe o resultado. Lula foi maior, ontem, 30/10/2022, do que em 2002 e 2006.
Lula não foi eleito pelo Nordeste, nem foi derrotado nas outras regiões. A distribuição geográfica do voto é uma contingência sócio-econômica. Acontece em todo o mundo. O voto é nacional, o colégio eleitoral do presidente é o Brasil, não são os estados, que elegem deputados federais e senadores e os executivos e legislativos estaduais. As regiões a ninguém elegem. Não existem 27 brasis, nem mesmo cinco brasis. Tampouco, existem dois brasis, como disse o presidente eleito Lula, em seu discurso de aceitação da vitória. Lula venceu no Brasil.
O Brasil que sai das urnas não é um país dividido em duas partes. É uma sociedade fragmentada, que se agregou em dois pólos. E não foram pólos equivalentes. O polo derrotado teve como força de atração a mobilização extremada, de emoções hiperexacerbadas, em igrejas evangélicas, no campo e em empresas, excitadas por temores artificialmente construídos, numa rede envolvente de mentiras e desinformações. Cada grupo tinha objetivos próprios, mas o conjunto não tem objetivos comuns. Bolsonaro foi um candidato à reeleição sem projeto, com uma visão estreita e excludente de país. Era uma séria ameaça à democracia, por sua fixação nas armas e sua propensão autocrática.
O polo vitorioso foi construído em grande medida de forma espontânea, pela adesão de setores sociais e políticos, que nunca foram aliados do PT, ao bloco formado pelos partidos de esquerda que lançaram a candidatura de Lula. Durante a campanha afirmei várias vezes que foi a sociedade que formou a frente ampla pela democracia. Lula entendeu o significado maior dessas adesões e se abriu a elas. Daí começar a dizer, ainda na campanha, que o seu não seria um governo do PT, mas da ampla frente de forças e pessoas que se juntaram a ele.
Entre os eleitores de Bolsonaro há conservadores dispostos a se manter no campo democrático. Há ultraconservadores extremados, dispostos a embarcar numa aventura autocrática e golpista. Mas, a maioria, foi de eleitores antipetistas. Pessoas que já votaram em Lula ou em Dilma e que se decepcionaram e ficaram enraivecidas com as promessas não cumpridas. Uma parcela da população que cabe a Lula reconquistar, não para ele ou para o PT, mas para o campo democrático.
O silêncio de Bolsonaro diante da derrota é apenas mais um lance que o apequena. Ele sai minúsculo do governo, apesar da votação que teve. Lula, ao contrário, entendeu perfeitamente o momento e o significado de sua vitória. Qualquer declaração que faça, hoje ou em qualquer outro dia futuro, chegará atrasada e inadequada. Na democracia os ritos devem ser executados a seu tempo, em tempo real. O tempo da declaração de reconhecimento da vitória e desejar ao presidente eleito e ao país boa fortuna já passou para Bolsonaro. Ele encerra esta parte do processo de sucessão no poder mostrando a mesma falta de decoro e o mesmo desrespeito pela instituição da presidência da República que marcou seu governo.
Entre os eleitores de Lula há um contingente majoritário que não é petista e nem sempre votou nos candidatos do PT, nem mesmo em Lula. O presidente eleito deu firmes indicações de que entendeu isto. Em seu discurso de aceitação da vitória, lido formalmente — uma novidade em relação às suas outras eleições — ele reconheceu a natureza de sua vitória. Primeiro, ao dizer que: “Não existem dois Brasis. Somos um único país, um único povo, uma grande nação.“
Mais adiante, definiu com clareza e correção o que representou sua vitória: “Esta não é uma vitória minha, nem do PT, nem dos partidos que me apoiaram nesta campanha. É a vitória de um imenso movimento democrático que se formou, acima dos partidos políticos, dos interesses pessoais, das ideologias, para que a democracia saísse vencedora.”
Foi por entender desta maneira sua conquista de um terceiro mandato, inteiramente distinto dos dois mandatos anteriores, que Lula mudou a forma de se pronunciar logo após o resultado oficial. Nas outras eleições o discurso de vitória foi o último discurso da campanha, ainda inflamado, ainda adversarial, de improviso, dirigido à militância. Nesta, foi um discurso lido, circunspecto, formal. O improviso, ele deixou para a apoteose da Paulista. E, mesmo lá, não deixou de dar o recado de que ele representa uma frente, que seu governo será desta frente.
Lula se comportou da melhor maneira que uma liderança democrática pode se comportar em um dos momentos mais importantes do rito democrático. Mostrou grandeza. Quem temia um Lula rancoroso, encontrou um Lula ferido, mas afetuoso e grande, reconhecido pela plena reconquista de reputação por meio da recondução pelo voto plural ao governo do Brasil. Os compromissos que Lula assumiu neste discurso atendem a todos os setores que formaram esta frente ampla pela democracia e pela reconstrução do Brasil. Atende a Marina Silva e aos ambientalistas, a Simone Tebet e aos interesses e valores que ela representa, atende aos líderes e intelectuais públicos do extinto PSDB, que sempre foram oposição aos governos do PT.
Atende a todas as pessoas que passaram por cima das divergências e, até, dos embates duros, beirando a ofensa, para apoiá-lo. Como fez a filha do ex-presidente Michel Temer, Luciana Temer, que, em sua declaração de voto a Lula, disse que votava por um projeto de país.
“Eu defendo um modelo de país e de sociedade, que não é possível, definitivamente, com um governante que desrespeita as instituições, que é favorável a crianças não frequentarem a escola, ao armamento das pessoas e que tem falas e atitudes machistas, racistas e homofóbicas.”
Se Lula continuar com esta compreensão do que acaba de acontecer e fizer um governo fiel à frente que o elegeu, será bem sucedido. Deixará o governo consagrado como aquele que resgatou o Brasil de um desvio autoritário e repôs as coisas e as ideias no seu lugar.
É um desafio imenso. Lula tem condições para enfrentá-lo com a força deste amplo acordo que se formou em torno de sua liderança e que lhe traz, também, conhecimento e propostas concretas para enfrentá-lo.
Essas vozes que se uniram em coro para designar Lula como o único capaz de resgatar a democracia e a justiça social no Brasil e que levaram a maioria dos eleitores do país a elegê-lo superam e sucedem o silêncio patético do perdedor.