Esta eleição não é sobre escolha de programas de governo. O que está em jogo é a democracia. Esta é uma eleição singular. São dois presidentes buscando a reeleição. Um surgiu nas lutas pela restauração das eleições diretas para presidente e pela reconquista da democracia. O outro, saiu obscuridade da vida parlamentar indecorosa para jetskiar as ondas da insatisfação, pregando o ódio, a morte e o autoritarismo. O que os ex-presidentes do Supremo Tribunal Federal dizem ao manifestar apoio a Lula é isto. Trata-se de apoiar o candidato que pode vencer e afastar o perigo à democracia.
Lula disputou a presidência três vezes antes de se eleger presidente. Duas delas perdeu no primeiro turno. Ninguém fica feliz em perder. Lula não ficou. Mas, nem por isso ele renegou os resultados, ou quis impugnar as urnas eletrônicas. Bolsonaro, mesmo ganhando, manchou a eleição com acusações de fraude, em 2018, porque não ganhou no primeiro turno. Ele não admite ser contrariado, nem pelo eleitor. No governo, sempre reagiu com animosidade, violência e autoritarismo a qualquer atitude que o contrariasse. Esta tem sido a tônica de seus ataques enraivecidos aos ministros Luís Roberto Barroso, Edson Fachin e Alexandre de Moraes, que contrariam suas pretensões de disputar a eleição em condições desiguais e abusando do poder.
Cobranças de programa de governo, neste momento, não fazem sentido. Este foi o erro de Ciro Gomes, ao insistir em sua candidatura e na discussão de propostas de governo, descurando das ameaças à democracia e igualando candidaturas desiguais neste quesito essencial. Lula não é igual a Bolsonaro. Sua história é outra e muito mais honrosa. Seu governo não ameaçou a democracia. Ciro estava nele e sabia disso.
Não estão em jogo na eleição o equilíbrio fiscal, as prioridades de políticas públicas ou qualquer outra questão governamental. É claro que haverá ações inarredáveis de políticas públicas, para combater a fome, a miséria e o desalento; restaurar a lei e a ordem na Amazônia e no Cerrado; dar direção ao país desgovernado. Mas a questão primeira, que se impõe sobre todas as outras, neste marco zero da reconquista do Brasil das Diretas Já e da Constituição de 1988 é a democracia.
Oposição legítima é sobre políticas públicas alternativas, prioridades de gasto público diferentes. Para a democracia, não pode haver oposição, as alternativas são inadmissíveis. Por isso formou-se na sociedade brasileira, por fora dos partidos e das preferências ideológicas, uma frente ampla pela democracia. Esta frente considera Lula o único candidato capaz de derrotar a ameaça autoritária representada por Bolsonaro.
A discussão do programa de políticas públicas ficará para o momento de formação do governo, que deveria definir, também uma oposição legítima. Não a oposição golpista. A oposição substantiva deve se opor a políticas equivocadas e a escolhas programáticas que admitem alternativa à esquerda e à direita. As pesquisas mostram que a maioria prefere que a eleição se resolva no primeiro turno, exatamente porque não se trata sobre como será o governo, mas se ele será democrático.
O governo terá pouco espaço para suas políticas públicas. Receberá um país triste e ferido. Ferido de morte na pandemia. Ferido novamente em seu bem-estar com o desastre econômico. Ferido no seu patrimônio natural depredado a mando de Bolsonaro. Ferido no desgoverno, com todo o aparato de políticas públicas demolido. Ferido na educação, com o ministério da Educação saqueado nos seus propósitos e na sua missão. Ferido na saúde. Nas vacinas sonegadas, no descrédito do plano nacional de vacinação, que era patrimônio público e salvou muitas vidas, principalmente de crianças. Ferido pelo retorno do sarampo, da poliomielite, da meningite.
A reconstrução será penosa e terá que ser rápida.
Nenhum presidente realmente interessado em levar o Brasil ao sucesso nas próximas décadas precisa de programa previamente. Os programas, as boas ideias, estão disponíveis na sociedade. Pensamos muito no futuro do Brasil, exilados no deserto pelo desgoverno de Bolsonaro. Lula, eleito, precisará apenas de sabedoria para escutar quem passou esses anos pensando políticas para depois de Bolsonaro. Políticas necessárias e corretas para educação, combate à pobreza, inovação. As perdas foram enormes com as despolíticas de Bolsonaro, agravada pelos efeitos da pandemia, principalmente na educação. Deveria ouvir, se for eleito. Talvez não haja transição adequada e receberá o governo, se eleito, sem informação. Certamente o receberá sem orçamento. O que está na mesa é um escárnio.
Lula já recebeu de Marina Silva o programa necessário para a questão ambiental. Se tiver olhos de ver e ouvidos de ouvir, encontrará planos muito bem pensados para o desenvolvimento da Amazônia com a floresta em pé; para a agricultura de zero-carbono; para a nova matriz energética; para a nova macrologística do país; para o aproveitamento das oportunidades abertas ao Brasil pela transição global. O país está apto a se tornar potência em vários campos das novas tecnologias, falta-lhe os meios e os programas. Os meios dependerão de orçamento sério e escolhas estratégicas. As ideias mestras para os planos estão disponíveis para o exame e operacionalização do novo governo.
São ideias apartidárias, ou melhor, cujo único partido é o Brasil. De verdade. Não este Brasil infernal do imaginário doentio de Bolsonaro. Ideias para a economia, para a sociedade, para o meio ambiente, para a política e o governo. Estão maduras. Estão à disposição do eleito, se ele as quiser. Se não quiser, serão matéria-prima para uma oposição programática, propositiva. Mas, o prerrequisito é a restauração do estado democrático de direito, o retorno do governo à órbita da Constituição e do decoro, ao respeito inegociável pela democracia. E é somente esta preliminar que estará em jogo no domingo na disputa pela presidência.