A decisão do TRF-4 esgotou a maior parte do processo contra Lula (o que estava mais avançado na Justiça) e confirmou a sentença da primeira instância. Muda o seu status jurídico, de réu para condenado. Essa mudança afeta diretamente o status político de Lula. Pela Lei da Ficha Limpa, aprovada a partir de uma iniciativa popular e com ativa liderança do PT no Legislativo, ele está inelegível. A discussão jurídica sobre os elementos de culpa, no plano judicial, se esgotou. É muito pouco provável que os tribunais superiores invalidem a sentença. Menos ainda que se insurjam contra a aplicação da Lei da Ficha Limpa. A inelegibilidade e a prisão seguirão cursos jurídicos distintos. A primeira é praticamente certa. A prisão não, pode ser contestada judicialmente. Para a inelegibilidade, há jurisprudência firmada e numerosos casos julgados e aplicados. Se pela Justiça as portas estão se fechando, pela política, não tem saída boa. O resultado será contestado na sua justiça e na sua legitimidade. É inevitável.
Nas chamadas ciências sociais, e o direito é uma ciência social aplicada, a controvérsia sobre a subjetividade e a motivação das interpretações é permanente e irresolúvel. O julgamento colegiado é uma forma de minimizar o fator subjetivo pelo confronto de subjetividades, o que o sociólogo Max Weber chamou de intersubjetividade. Mas não se escapa do fato de que o observador, o intérprete, o analista é parte do processo que observa, interpreta ou analisa. Isso é inescapável. O juiz é um cidadão no mundo, que cumpre o papel de magistrado, entre os seus inúmeros outros papéis sociais (filho, pai, consorte, cidadão, eleitor, professor, para ficar nos mais óbvios). Ele sofre pressões, lê jornais, conversa com pessoas. Ainda que não trate do processo específico em julgamento, troca ideias com amigos, colegas e familiares sobre o ambiente geral da política, da sociedade e do direito. A letra da lei não é unívoca, admite interpretação, exegese. Não fosse assim, seria inexplicável a enorme quantidade de livros jurídicos, de análise doutrinária, exegese de textos legais, direito comparado, não raro revelando interpretações alternativas do mesmo texto. Esse elemento interpretativo e intersubjetivo do direito, quando se encontra com a política provoca controvérsia e conflito. Vem aumentando o debate e a tensão em torno da judicialização da política e sua contrapartida que é a politização do Judiciário. Sempre se encontra argumento político para justificar a inconformidade com a decisão jurídica. Apesar de todos dizerem que decisão judicial se cumpre, o comum é discuti-la e contestá-la.
Por mais que nossas instituições democráticas se mostrem resilientes às crises políticas e eficazes para resolver graves problemas sociais, como a hiperinflação, elas têm lacunas e falhas sérias que precisam ser enfrentadas. Uma delas é a divergência insustentável entre a definição legal das condições para o cidadão se candidatar à Presidência da República e a vedação constitucional de que réus não podem exercer o cargo de Presidente. Essa contradição gera a possibilidade concreta de enorme stress institucional, na hipótese de um réu se eleger presidente e o Supremo Tribunal Federal se vir na obrigação constitucional de impedir sua posse. É elementar que só pode se candidatar a um cargo o cidadão que preencha todas as precondições legais e constitucionais para o exercício desse cargo. Menos no Brasil.
O caso mais claro de insuficiência do arcabouço institucional da democracia presidencialista no Brasil é o do impeachment. Uma comparação fria dos processos de deposição dos presidentes Collor e Dilma mostra que se deram sob regras muito desiguais. Collor foi afastado temporariamente após a decisão da Câmara de autorizar, por dois terços dos votos, a abertura do processo de impeachment. Dilma só foi afastada após a pronúncia decidida pela maioria dos senadores. O processo contra Collor seguiu rito sumário e durou 122 dias. Collor foi afastado temporariamente 28 dias após o despacho do presidente da Câmara admitindo o pedido de impeachment. O processo de Dilma seguiu rito completo e durou 273 dias. Dilma foi afastada 162 dias após o despacho do presidente da Câmara, e só depois de que o Senado decidiu pelo prosseguimento do processo de impeachment. Os processos dos dois presidentes seguiram roteiro definido pelo Supremo Tribunal Federal. Não se pode dar como boa uma institucionalidade que permite tratamento desigual a presidentes, numa decisão tão grave como a interrupção do mandato, sob a mesma ordem constitucional. Isso independentemente da opinião que se tenha sobre o impeachment de cada um em particular, se foi justo ou não, arbitrário ou não. Nada garante que um próximo impeachment, regulado por outra composição do STF, siga um outro roteiro processual. Essas falhas enfraquecem o estado democrático de direito. Além disso, aumentam o espaço para a judicialização da política.
No caso da condenação de Lula, uma liderança de massa, ex-presidente, figura ímpar do principal partido de esquerda, sob cuja sombra nenhuma outra liderança prosperou, a inelegibilidade não é um fato trivial. Embora líquida e certa vai criar uma enorme polêmica que afetará o clima e a narrativa das eleições deste ano. Elas ficarão marcadas pela ausência de Lula. A polarização vai se agravar e radicalizar ainda mais. Se Lula insistir na candidatura, agora legalmente inviável, aumentará a tensão e a incerteza pré-eleitoral, sem muitas vantagens reais para ele ou seu partido. O PT sairá prejudicado, ao focalizar toda a sua estratégia na candidatura hoje impossível de Lula. Estaria optando pela luta política sem fim definido, em detrimento de uma alternativa competitiva para a disputa eleitoral, que também impulsione o crescimento da bancada parlamentar. É pouco provável que a pressão organizada pelo PT e seus aliados force o Judiciário a permitir algo que a lei, claramente, impede. Sem Lula, a esquerda não tem mais uma candidatura forte. O primeiro turno ficará muito mais competitivo e incerto, levando a um segundo turno provavelmente sem um claro favorito.
A estratégia de forçar a candidatura pela via eleitoral tem tudo para fracassar. A via ainda possível, mas de baixa probabilidade, é a da suspensão da sentença por erro formal. Isto é, por ilegalidade, por meio de recurso especial ao STJ, ou, por inconstitucionalidade, via recurso extraordinário ao Supremo Tribunal Federal. No Judiciário, o consenso é que a precisão técnica do TRF4 e do próprio juiz da 13a Vara Criminal Federal de Curitiba, Sérgio Moro, dão pouca margem à suspensão e, menos ainda, à anulação da sentença de condenação. A defesa de Lula foi tecnicamente fraca e fiou-se demasiadamente na esperança de que a pressão política a socorresse. É claro que, entre advogados, no meio político e na sociedade, todos afetados pela polarização hoje dominante, as opiniões são divididas e a sentença será considerada injusta e infundada por um lado, e justa e correta, por outro. Não tem jeito, nem solução.