O que têm em comum a convocação de eleições antecipadas pelo primeiro-ministro social democrata espanhol, Pedro Sánchez, e a decretação de estado de emergência pelo presidente Republicano de extrema direita, Donald Trump? Vejo pelo menos duas questões institucionais comuns a ambos. A primeira, é que os atos destes governantes são respostas a decisões orçamentárias do parlamento. No caso espanhol, a rejeição do orçamento apresentado por Sánchez não lhe dava muita opção. Ou renunciava, considerando que essa decisão correspondeu a uma moção de censura, ou convocava eleições, na tentativa de conquistar a maioria no novo parlamento. No caso americano, é consenso entre os constitucionalistas que o “poder da bolsa” (power of the purse), pertence ao Congresso. O que Trump fez, nenhum outro presidente jamais ousou fazer. Quer usar poderes excepcionais para situações de perigo iminente como recurso para opor-se a uma decisão orçamentária do Congresso.
A segunda questão institucional comum diz respeito a uma diferença fundamental entre parlamentarismo e presidencialismo. No parlamentarismo, por mais que os primeiros-ministros tenham adquirido maior latitude decisória ao longo do tempo, o poder assenta-se indiscutivelmente no Legislativo. No presidencialismo, o centro do poder é o presidente, além de tudo, a única autoridade escolhida nacionalmente pelo voto da maioria. Mesmo nos Estados Unidos, embora o voto decisivo para eleger o chefe do Executivo seja indireto, seu eleitorado é o único nacional e é mais amplo que o de qualquer parlamentar. No parlamentarismo, é o contrário, os parlamentares são escolhidos pelo povo e o primeiro-ministro sancionado pelos parlamento.
Não há disputa em relação ao fato de que a Presidência americana, hoje, é muito mais poderosa do que na primeira metade do século XX ou no século XIX. Sem dúvida, muito mais do que imaginaram os autores da constituição. Ampliaram-se o poder presidencial e o escopo de ação da União muito além da imaginação dos fundadores da república. Em geral, a presidência dos Estados Unidos é vista pelos politólogos como fraca, em comparação às presidências latino-americanas. Mas ela se fortaleceu muito durante a Guerra Fria e na última geração de presidentes, iniciada com Ronald Reagan, na década de 1980. Continua a ser um poder imperial, quando comparado ao de qualquer primeiro-ministro.
Ao recorrer ao estado de emergência, em pleno impasse com o Legislativo, que provocou o mais longo período de fechamento do governo por falta de orçamento, e em resposta a uma decisão soberana do Congresso, Trump levou essa ampliação dos poderes presidenciais a um novo patamar. Causou dano real às regras institucionais da democracia americana, ferindo o princípio da divisão de poderes e os mecanismos de freios e contrapesos que a sustentam. Ainda não é um dano irreparável.
A atitude de Trump gerou enorme controvérsia e será inevitavelmente judicializada. O argumento constitucional do presidente para justificar seu ato é muito mais fraco do que as razões de seus opositores, para contesta-lo. A maioria dos juristas acredita que Trump passou dos limites, mesmo levando em conta a discricionariedade que lhe conferem as regras em casos de real perigo para a segurança nacional ou de emergências econômicas. As bases de justificação substantiva do ato presidencial são muito frágeis e o objetivo, de fazer gastos que o Congresso rejeitou, não tem precedente. Mas, a Suprema Corte tem se recusado a analisar essa questão ou, nas poucas vezes em que a analisou, julgou a favor de mais e não de menos autonomia da Presidência.
Se a Suprema Corte não vetar a decisão de Trump, a única saída para a democracia americana seria o Congresso revogar a legislação que ampliou as possibilidades de recurso independente ao estado de emergência pelo presidente. Os que se preocupam mais com a segurança nacional do que com a democracia, consideram ser esta a maior ameaça ao país. Os que se preocupam com a democracia acham que a maior ameaça é o precedente, a possibilidade de presidentes futuros rotinizarem o recurso a esses poderes especiais para confrontar qualquer decisão do Congresso que os desagradem.
O falecido ministro da Suprema Corte dos Estados Unidos, Robert H. Jackson, disse que estado de emergência cria emergências, em julgamento de 1952 que ficou famoso na jurisprudência americana. Esse raciocínio nunca foi tão atual, apesar de anterior em décadas à adoção pelo Congresso do National Emergencies Act, em 1976, que ampliou os poderes da Presidência dos Estados Unidos para decretar estado de emergência. Parece ter sido escrito tendo em mente o perigoso precedente criado por Donald Trump, em seu embate personalíssimo contra o Congresso. Trump recorreu a esses poderes, usando como pretexto inexistente ameaça à segurança nacional na fronteira sul do país, que o separa do México, para resistir à recusa pelo Legislativo de recursos para financiar o muro que teima em construir. É a primeira vez que um presidente usa essa faculdade excepcional para elidir uma decisão orçamentária do Poder Legislativo. É uma decisão para lá de controvertida. Recebeu duras críticas de congressistas republicanos. Os Democratas a consideraram ilegal. A medida de Trump levou os Estados Unidos, pela primeira vez em muito tempo, à perigosa fronteira entre a democracia liberal e a democracia iliberal, se não ao autoritarismo.
Publicado originalmente no Blog do Matheus Leitão/G1