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Militarização em curso ameaça a democracia e o bem-estar do país

  • Categoria do post:Política

Dois episódios esta semana revelam o avanço da militarização de áreas sensíveis de políticas públicas e da degradação da democracia brasileira para um sistema autocrático. O mais evidente deles foi a reunião do general-ministro da Saúde com os governadores. Ela mostrou não apenas a politização da vacina, mas que a missão de Pazuelo não é cuidar da saúde pública, mas de fazer valer a vontade de Bolsonaro na política de saúde, em particular no enfrentamento da pandemia. As declarações de Pazuelo tiveram teor irresponsável e autoritário. O outro evento sintomático da síndrome militar-autocrática que ataca nossa democracia foi o anúncio dos dados do Deter sobre desmatamento da Amazônia. O que tem de anômalo neste anúncio foi seu portador ser o ministério da Defesa, não o Inpe, ou o ministério da Ciência e Tecnologia, ao qual ele está ligado, ou o ministério do Meio Ambiente, responsável pelo programa de combate ao desmatamento e ao qual estão ligados o Ibama e o ICMBio.

Este ensaio de militarização do desmatamento na Amazônia tem um subtexto intimidatório. Não é atribuição do ministério da Defesa fazer a comunicação dos dados de desmatamento, nem a implementação da do combate ao desmatamento. É uma forma de calar críticos e esvaziar, simultaneamente, o INPE, responsável pelos dados, e o Ibama, responsável pelo combate ao desmatamento. Há muito o governo ameaça militarizar a geração de dados baseados na análise de imagens de satélites e neutralizar o INPE. Seria um golpe na democracia e no programa científico e tecnológico brasileiro que tem no INPE um de seus centros de excelência. O general Mourão disse recentemente, que as forças armadas só podem dar apoio logístico e cobertura à ação dos orgãos competentes, o Ibama, o ICMbio, as agências ambientais estaduais, a Polícia Federal e as polícias estaduais. Estava certo. A intervenção militar no rotineiro anúncio dos dados do Deter, o sistema de alerta de desmatamento em tempo real, é que uma anômala.

No caso da Saúde, o general Pazuelo revelou sua subordinação ao negacionismo de Bolsonaro e à politização da vacina ao dizer — e repetir — que “se houver demanda e preço” comprará a vacina CoronaVac. Em outra frase reveladora, o general disse que o ministério que comanda vai adquirir “todas as vacinas que tiverem sua eficácia e registros da maneira correta na Anvisa, se houver necessidade”. Disse, ainda, que toda vacina “vai precisar comprovar sua eficácia, segurança e ter o registro da Anvisa”. E completou “não abrimos mão disso”. Os condicionantes se houver demanda e se houver necessidade retorna ao negacionismo do chefe. É óbvio que há necessidade e demanda. Com a pandemia em plena segunda onda e acelerando, o número de mortes deve ultrapassar 180 mil, podendo chegar rápido a 200 mil, e o número de casos rumando para a casa dos 7 milhões, como não seria preciso ter todas as vacinas demonstradamente eficazes no plano de imunização da população? Só o governo federal não vê a segunda onda, ou repique, ou recidiva ou o nome que se queira dar. É local e global e os dois piores casos são os dos Estados Unidos e Brasil.

A advertência, em tom autoritário, sobre ser imprescindível a análise da Anvisa é uma reposta à iniciativa do governador Flávio Dino, de pedir ao STF que se manifeste sobre a aplicabilidade da lei 13.979/2020, que autoriza o uso em emergências de imunizantes aprovados por agências regulatórias da área de medicamentos. As agências especificadas na lei são Food and Drug Administration (FDA), americana; European Medicines Agency (EMA), da UE; Pharmaceuticals and Medical Devices Agency (PMDA), japonesa; e a National Medical Products Administration (NMPA), chinesa. É, também, uma resposta à atitude do governador João Dória, que marcou data para iniciar a vacinação no estado e soou como um ultimato à Anvisa.

Dória errou ao também politizar a vacina. Mas foi erro menor, Incomodou outros governadores e mereceu a resposta dos descontentes. A sua reação respondia, porém, à declaração de Bolsonaro de que seu governo não compraria a vacina chinesa. Arrogância autoritária inspirada por preconceitos ideológicos copiados de Trump. O ministério da Saúde deu vários sinais de que caminhava para obedecer a Bolsonaro. Dória devia, mesmo reagir, mas escolheu a maneira errada de fazê-lo. Flávio Dino acertou. Diante dos danos à credibilidade da Anvisa e das dúvidas sobre a isenção técnico-científica de suas análises, no ambiente de militarização politizada que dominada a Saúde, é preciso mesmo buscar meios alternativos de suprimento da vacina. É uma obrigação de governadores e prefeitos resistir, por desobediência ao comando central do ministério, se persistirem o viés negacionista e a atitude contrária a governadores de oposição nas decisões do ministério e da Anvisa.

A militarização da Saúde alcançou a Anvisa, presidida por um militar que participou, ao lado de Bolsonaro, de manifestações contra as instituições democráticas. Além dele, Bolsonaro quer na diretoria da agência outro militar, um tenente-coronel, sem qualquer qualificação na área de saúde pública, epidemiologia ou controle de medicamentos. Quebra-se, desta forma, a confiança na agência, pois será comandada por diretores que podem interpretar como sua missão seguir a orientação hierárquica, que tem sido inequivocamente política, em detrimento das orientações técnico-científicas. Diante da desconfiança, das fissuras na credibilidade da Anvisa, por haver dúvida razoável sobre sua isenção técnico-científica, é natural que governadores e prefeitos busquem rotas alternativas para a vacinação de suas populações. Elas passam por acordos diretos com produtores como a Pfizer e a Moderna e com o Instituto Butantan. Já procuraram o Butantan, por exemplo, os prefeitos de Curitiba e Belo Horizonte.

O governo federal errou seriamente ao apostar em apenas uma vacina, a da AstraZeneca/Oxford, que teve problemas sérios nos testes terapêuticos e vai atrasar. E nem se sabe se terá a mesma eficácia das demais, ou do risco que pode envolver para idosos. A aceleração dos testes terapêuticos implica em maior probabilidade de erros e numa escolha tão parcimoniosa de variáveis de teste que podem deixar passar riscos importantes. Acaba de acontecer também com a vacina da Pfizer/Biontech, que mostrou reações alérgicas importantes não testadas. Variáveis relevantes excluidas dos testes podem se mostrar críticas na vacinação em massa. Só então, se saberá que vacina será segura para quem. Daí a necessidade de se ter um amplo leque de vacinas no programa de vacinação. É o único meio de garantir que terá uma vacina para cada grupo de pessoas na população crianças, idosos, alérgicos, etc…

A militarização de áreas fundamentais para o futuro do país, como a Amazônia e saúde pública, nada tem de natural ou compreensível. Ameaça seriamente a eficácia das políticas que garantem a segurança e o bem-estar coletivos. É um perigo para a democracia brasileira, e ainda maior com o silêncio das instituições de freios e contrapesos diante da ação autocrática do Executivo.