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Como a guerra pode acabar e que riscos evitar?

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Qual o risco maior na Ucrânia, e como esta guerra pode acabar? A pergunta sobre o risco externo é pouco usual no Brasil, porque não temos ameaças estratégicas significativas. Em geral fica-se na análise dos riscos internos. Mas é um tem obrigatório nos países em posição geopolítica mais sensível. Como acabar a guerra é a pergunta que mais se ouve em todas as entrevistas e conversas.

Risco, tem uma resposta clara e imediata. Começo dizendo o que risco não é na literatura técnica. Diferente do uso comum, não é um evento adverso de alta probabilidade. Este tipo de situação deve ser objeto de ações preventivas e defensivas imediatas, ou preparação para lidar com os danos, porque pode acontecer mesmo. Risco não é, tampouco, um evento perigoso. Uma situação de perigo pode conter riscos e perigos muito prováveis. Risco é um evento de baixa probabilidade, inesperado mesmo, e de alto custo ou dano, pessoal, humano, ambiental, político ou econômico, ou todos juntos. Se existe risco, então é preciso evitá-lo, ou se prevenir contra ele, porque ele pode ter um custo inaceitável. Quando não é possível evitar o risco ou evadir-se dos seus custos, é preciso antecipar os danos para minimizá-los.

É exatamente este tipo de risco que está orientando as decisões estratégicas dos países da OTAN. O principal risco a evitar é nuclear. A probabilidade é baixa, mas as consequências são apocalípticas. Por isto é unânime a opinião nos governos de que nenhum país da OTAN deve engajar tropas na Ucrânia para deter as forças russas. Também por isso não aceitam estabelecer uma zona de exclusão aérea, fechando o espaço aéreo da Ucrânia total ou parcialmente, apenas sobre os corredores humanitários. Seriam ações de guerra contra a Rússia e um confronto sem precedentes entre potências nucleares. Há muita pressão em meios políticos e militares em favor de uma zona de exclusão aérea, ainda que limitada, mas os governos resistem. Até porque as pressões vêm dos setores mais fortemente ideológicos. Todos os países da OTAN estão discutindo cenários de desenvolvimento desta guerra e, em todos eles, avaliando os riscos, principalmente o nuclear. Esta avaliação é permanente e permite minimizar ou evitar esses riscos.

Fora informações reservadas de inteligência às quais não se tem acesso, nenhuma análise sobre as opções da Rússia, nesta etapa da guerra, consegue avaliar como Putin vai reagir. A reação do invasor aos eventos de guerra é um dado fundamental para a análise de risco e para buscar meios de terminar a guerra. Algumas interpretações usam a história para inferir seu comportamento presente e futuro. Outras, consideram que existe um alto grau de irracionalidade nas reações de Putin que o tornam imprevisível. Tendem a apostar no tudo ou nada, na destruição total. Quando Putin começou a concentrar tropas na fronteira da Ucrânia e em Belarus, os melhores analistas, usando de muito realismo, tinham boas explicações para o comportamento de Putin e conseguiram estimar as opções que estavam disponíveis para ele. Terminavam por concluir que a opção mais provável era a invasão. Alguns acertaram, inclusive, na extensão dela: apostaram em uma invasão total, em lugar de ocupar as províncias separatistas e consolidar sua presença na Crimeia, para depois negociar a resolução do conflito.

Putin vai intensificar os bombardeios e arrasar os centros urbanos que pretende ocupar. Vai avançar sobre Kyiv. O custo para a Ucrânia em vidas humanas já é e ainda será mais brutal. Será muito alto, também, para os russos, não apenas em baixas nas tropas, como econômica e politicamente. Há razoável consenso de que uma ocupação prolongada, para sustentar um governo teleguiado por Moscou, enfrentaria uma população enraivecida e maltratada, estimulando a insurgência. Uma reação da linhagem da resistência francesa à ocupação alemã na Segunda Guerra, fortalecida por armas modernas e enriquecida pelas muitas experiências de guerra de guerrilha que se sucederam aos “maquisards” franceses. Há um risco presente e real de genocídio na Ucrânia.

Os analistas de risco não descartam como impossível, ou impensável, o uso de armas nucleares pela Rússia, principalmente um teste a grande altitude, que afetaria as redes elétricas e de telecomunicações de uma grande cidade como Kyiv, ou bombas táticas, de pequeno porte, para destruir instalações militares. O que dizem é que a probabilidade é muito baixa, mas o Ocidente deve se precaver.

Além disso, o diretor-geral da Agência Internacional de Energia Atômica, Rafael Grossi, manifestou preocupação crescente com os incidentes diários que estão levando à deterioração da segurança e das salvaguardas nas usinas nucleares na Ucrânia. Esta preocupação o levou a se reunir, em Antalya, na Turquia, com os ministros das relações exteriores da Rússia, Serguey Lavrov, e da Ucrânia, Dmytro Kuleba, para explicar o quadro tecnicamente e pedir um acordo tripartite que preserve as usinas de qualquer risco adicional. Levou consigo dois diretores, o de segurança e o de salvaguardas. Ao voltar de Antalya, disse em coletiva de imprensa que a agência perdeu a capacidade de monitorar a segurança e a integridade das salvaguardas em Chernobyl e em Zaporizhzhya, porque não recebia mais online as informações dos sensores nas duas instalações. Mas, ainda considera que, no momento, não há perigo iminente. Há riscos. Segundo ele, sem monitoramento, não há como antecipar desastres, no caso de alguma falha operacional ou humana, nem rastrear o material nuclear, para evitar que acabe desviado e caia em mãos erradas. As salvaguardas são para evitar a não-proliferação de material nuclear. Para Grossi, é uma situação séria, que exige ação rápida para remediá-la. Por isso, vai apresentar, “nas próximas horas ou dias”, aos dois chanceleres, uma proposta concreta de um acordo de proteção especial às usinas. Grossi disse estar muito preocupado também com o stress e a exaustão a que estão submetidos os técnicos de manutenção nas duas instalações. Eles não estão podendo trocar turnos com equipes que descansavam fora dos locais e trabalham 24/24, elevando o risco de erro humano.

Já para a pergunta que mais se repete — como esta guerra acaba? — não há resposta firme. Primeiro, porque tudo depende da capacidade de resistência da economia russa às sanções e dos ucranianos ao impiedoso bombardeio a que estão sendo submetidos. Adicionalmente, depende da reação de Putin que, como disse, é difícil de prever. Há quem trabalhe com a premissa de que ele superestimou grosseiramente sua capacidade militar na Ucrânia e existe consenso de que ele subestimou a resistência ucraniana, inclusive nas áreas de língua russa, nas quais esperava apoio. Há quem o veja como mais irracional do que estratégico. Neste caso, haveria duas hipóteses: ele fracassaria, por conduzir uma invasão total que estava aquém de sua capacidade; ou aceitaria uma solução de compromisso, a partir de algumas concessões da Ucrânia a suas demandas. A terceira seria “o impensável”.

Há quem veja Putin como um obstinado cuja estratégia deu errado e que está sendo obrigado a mudar taticamente para se ajustar a cada inesperado, mas não abandonará seus objetivos. Neste caso, ele poderia partir para o tudo ou nada, numa guerra de terra arrasada, a exemplo do que fez em Grozny e Aleppo; ou avançar o suficiente para obter um acordo de força, com as concessões que deseja da Ucrânia e da OTAN. Nos dois casos as perdas humanas são inaceitáveis. É o eclipse da razão e da humanidade, vítimas de todas as guerras. O filósofo esloveno Slavoj Žižek, em vídeo endereçado aos que protestam na Rússia contra a invasão da Ucrânia disse, corretamente, que é preciso ter uma visão crítica do confllito. Não é verdade que seja a luta da verdade da Rússia  contra a verdade da Europa. (Devo a minha amiga Luca Toledo ter chamado atenção para o vídeo de Žižek em seu Twitter.)

A resposta para o “endgame” é adicionalmente dificultada pelo fato de que começar uma guerra é relativamente simples, lutá-la é muito mais complicado e custoso do que se planeja, e terminá-la é muito mais difícil do que se pensa. Sobretudo porque, iniciada, a guerra passa a ter uma dinâmica própria, sua lógica de desenvolvimento tem um elevado componente de retroalimentação. Há batalhas comparáveis, mas nunca uma igual à outra. Cada uma tem seu DNA. Portanto, tudo o que se diz sobre os finais possíveis para esta guerra envolve uma razoável dose de especulação.

Os métodos usados para inferir os finais possíveis para a guerra são os mais diferentes, desde cenários desenvolvidos a partir de precedentes históricos — todos já devem ter ouvido que esta é uma situação sem precedentes — até jogos e simulações. Este últimos, de forma muito simplificada, são modelos computacionais em que se introduz as premissas, os dados e as trajetórias e se deixa que ele gere os resultados, que depois são analisados. Há jogos que são jogados por pessoas selecionadas, com perfis similares aos dos decisores. Já vi um “war room” desses funcionando, como um filme de alta tensão. É um recurso heurístico, mais do que analítico. Alguns resultados são descartados e os mais plausíveis são analisados estrategicamente. Uma das análises de jogos computacionais das quais vi o resultado chegava a conclusões semelhantes às que já mencionei: impasse, posição de força e acordo. Ao final, o autor escreveu “todos os outros resultados do jogo levaram ao fim do mundo”.

Concretamente parece haver três ou quatro saídas mais prováveis. A primeira saída seria a ocupação da Ucrânia pela Rússia e a instalação de um governo alinhado a Moscou, como o de Belarus. Neste caso, o maior problema para a Rússia seria o enfrentamento prolongado de uma firme insurgência ucraniana. No plano externo, seria quase impossível obter o reconhecimento do governo da Ucrânia ilegitimamente imposto. Para a OTAN o problema seria manter o financiamento e o suprimento militar aos insurgentes. A segunda saída, seria a Rússia parar o avanço em um ponto a partir do qual ir adiante poderia ser insustentável e negociar um acordo de paz. Este ponto seria determinado pelo desenvolvimento da guerra e pelos efeitos debilitantes das sanções contra a Rússia. A terceira saída, muito menos provável, seria uma derrota da Rússia porque seu exército seria mais fraco do que se imaginava e os ucranianos, bem armados, mais resistentes. Haveria uma quarta saída, ainda menos provável, que seria o efeito interno das sanções desestabilizarem Putin, que seria derrubado por uma coalizão de militares, tecnocratas civis e oligarcas, até agora ligados a ele, convencidos de que sua permanência no poder se tornou totalmente indesejável e cara demais. Aqui, subestima-se o efeito da repressão sufocando a oposição. A censura férrea impedindo a circulação de informações diferentes da propaganda do Kremlin. O efeito da disseminação da “verdade alternativa” de Putin nas crenças da população, que levam, inclusive, segundo um jornalista independente sob censura, a um estado de negação de qualquer versão diferente da oficial. Subestima-se, também, o laço simbiótico entre Putin, criador, e os militares e tecnocratas no poder e os oligarcas que se apropriaram dos despojos do estado soviético para enriquecer, com o apoio ativo de Boris Yeltsin e de Vladimir Putin.

Ao que parece que estamos entre a terra arrasada e o final negociado.