O Supremo Tribunal Federal fixou a primazia da Constituição e do léxico na questão da reeleição para mandato consecutivo nas Casas do Congresso. A vedação constitucional à reeleição para período subsequente consta do artigo 57, § 4º. Ela é cristalina e prescindia de qualquer interpretação ou regulamentação. Foi esta, felizmente, a tese vencedora em um plenário dividido. Antes assim. Pior seria prevalecer uma leitura de conveniência, violando não apenas o espírito da lei, como sua letra e o léxico. Caso contrário, a Suprema Corte nos informaria que no dicionário dos interesses políticos ocasionais o que é vedado pela Constituição pode ser permitido, dependendo das circunstâncias e das vontades. Seria um golpe na lei maior e na democracia.
A política brasileira anda tão pelo avesso, que é preciso que a Suprema Corte julgue sobre o elementar, até no uso da linguagem. Como disse a ministra Carmen Lúcia em seu voto no plenário virtual, “pela norma constitucional expressa, é vedada a recondução para o mesmo cargo da mesa de qualquer das Casas do Congresso Nacional na eleição imediatamente subsequente. A norma é clara, o português direto e objetivo.” E ressalta que “em dispositivo da Constituição da República, onde tenha o constituinte se utilizado do verbo vedar, vedado está. Pode-se ter por lógica e fácil essa conclusão. O esforço exibido em debates sobre o tema nos últimos tempos, entretanto, conduz a se concluir o oposto, demonstrando que parece se pretender revirar o sentido da língua pátria, confundir o significado das palavras e retirar a negativa constitucional onde negado pelo constituinte está.”
Em poucas palavras, o STF tem sido chamado a reconhecer o óbvio, a decidir se prevalece o significado de vocábulos inequívocos. E com alguma dificuldade, por 5 a 6. Bastaria uma consulta a um dicionário da língua portuguesa para verificar que o enunciado constitucional é de simples e unívoca compreensão. Não há uma acepção que permitisse entendê-lo diferentemente. Está proibida a recondução para período consecutivo. Simples assim.
É um caso exemplar. O envolvimento da Suprema Corte em questões descabidas como esta revela o custo de se passar dos limites na judicialização da política. Não era uma questão de controle jurisdicional de constitucionalidade. Era um tema de desentendimento eminentemente político. Um choque de interesses em torno da sucessão das direções das duas Casas do Congresso. De um lado, o governo e o centrão interessados na reeleição de Davi Alcolumbre, que também desejava muito continuar no poder. De outro lado, o governo nostrava-se descontente com a possibilidade de Rodrigo Maia continuar a comandar a Câmara. Resultado, o voto sob medida do primeiro nomeado por Bolsonaro, ministro Kássio Nunes Marques. Ele escreveu que, para Alcolumbre não valia a vedação, mas para Rodrigo Maia, não valia. Um primor de casuísmo. Outros votos, decidiram que a Constituição não valeria por só uma vez, nos dois casos. Uma sustação temporária, por motivação meramente política, do mandamento constitucional. Acabou prevalecendo o bom senso e restabeleceu-se o primado da Constituição.
Esta judicialização de impasses eminentemente políticos leva à politização do Judiciário e, em particular, do Supremo Tribunal. A polítização ficou retratada com precisão no resultado da decisão do plenário virtural sobre esta questão: um voto permitindo a reeleição no Senado e m antendo a vedação para a Câmara; quatro votos permitindo a reeleição em ambos os casos; seis votos considerando que aquilo que a Constituição veda, está proibido. É redundante, eu sei. A política busca frequentemente torcer a lógica, o léxico e a lei para impor determinados interesses de ocasião. Seus limites são mais fluidos do que na doutrina constitucional. Daí a importância do controle jurisdicional de constitucionalidade. Não era o caso de aplicá-lo. O Poder Legislativo e o Poder Judiciário são universos à parte. A aproximação demasiada entre os dois é perigosa para a democracia. Tenho insistido neste espaço para a necessidade de certas formalidades na convivência democrática.
O presidente do STF, ministro Luiz Fux, chamou atenção para os riscos envolvidos, como revelou Matheus Leitão. Fux disse em seu voto que “a judicialização excessiva – e, não raro, prematura – de conflitos eminentemente políticos empobrece os espaços de interlocução democrática” e, adicionou, “instiga o Poder Judiciário a intervir em questões que poderiam ter sido satisfatoriamente solucionadas através dos mecanismos típicos do processo político-democrático”. O ministro deixou claro que “merece crítica a prática epidêmica de se transferirem voluntariamente conflitos políticos para a arena judicial, o que tem exposto o Poder Judiciário, em especial este Tribunal, a um protagonismo danoso para a sustentabilidade do sistema constitucional”. E, eu acrescentaria, danoso para a democracia. O respeito às regras constitucionais que limitam, com muita parcimônia, o jogo político-democrático é essencial à preservação da própria democracia.
Aceitar esses limites é desconfortável às vezes. Mas a democracia não foi pensada para se ajustar sempre à zona de conforto dos agentes políticos dominantes. É um jogo que não permite, em algumas situações, que todos ganhem ou que alguns ganhem sempre. Frequentemente há ganhadores e perdedores. Ser democrata é aceitar perder nestas ocasiões, mesmo contrariados. Reparei, no debate público, em muitas manifestações de que, diante da lista de nomes à sucessão de Rodrigo Mais na Câmara, inclusive os nomes por ele mesmo referidos, era melhor que ele ficasse. Também não considero boas opções os nomes até agora propostos. Mas quem decidirá que deputado ou deputada deve presidir a Câmara em 2021 e 2022 será a maioria que se formar no plenário. Em outras palavras, voltamos à política. Nomes podem ser listados como teste, para queimar ou para dar partida a negociações. Nenhum dos parlamentares será sincero em público. Muitos falarão nomes que não apoiam, sobretudo no começo do processo, até que as candidaturas se firmem e comece a competição voto por voto.
Pelo meus cálculos, necessariamente imprecisos, ninguém tem a maioria, hoje, para eleger seu candidato na Câmara. No Senado, Alcolumbre nem deu muita margem ao surgimento de nomes alternativos ao seu. Confiava que o STF abrisse uma excepcionalidade constitucional a seu favor. Não deu. Agora terá que começar a articular sua sucessão. O jogo político começa agora. Já não há mais atalhos. A questão sucessória será decidida internamente, na negociação e no voto.
Bolsonaro não tem a maioria. Deve contar com algo entre 35% e 40% dos votos. Claro que fazendo promessas e distribuindo compensações. O centro não-alinhado deve ter em torno de 35% dos votos e a esquerda, perto de 25%. Portanto, só uma coalizão pró-Bolsonaro entre o centrão e o centro não-alinhado, elegeria o nome que ele preferir. Arthur Lira, o mais falado, tem tantos processos a responder, que a leniência da justiça alagoana não limpa seu caminho. Pode ser um candidato pesado demais para carregar até a reta final. O centro não-alinhado, se desejar um candidato que preserve a autonomia e a reputação da Câmara, terá que buscar aliados à esquerda. Neste caso, não poderá impor um nome. Ele sairá da negociação para formar a coalizão, que deve envolver a autonomia da Casa, cargos na Mesa e determinadas relatorias, vetos a certas questões em pauta e voto para outros pontos da agenda legislativa, entre outros compromissos possíveis. A esquerda, se quiser fazer um nome da centro-esquerda, terá que buscar os votos do centro não-alinhado. Vale o mesmo, mudando de direção: negociar um nome que una, pontos da agenda a serem votados e outros vetados. É o mesmo que dizer que a política resolverá a sucessão no Legislativo. Como deveria ser desde o começo.