Em períodos de normalidade institucional, o alinhamento de preferências dos chefes do Executivo e do Legislativo, apoiado em uma coalizão majoritária é condição necessária, embora não suficiente, e desejável para assegurar a governabilidade. Governabilidade aqui entendido como governança sustentada, a capacidade de aprovar e implementar as políticas públicas da agenda presidencial e da agenda de necessidades coletivas. Quando, porém a agenda presidencial não corresponde às preferências da maioria, não responde à necessidades estruturais para o bem-estar coletivo ou ameaça a própria democracia, este alinhamento se torna pernicioso e um risco potencial muito alto de erosão democrática.
Ao final de dois anos patéticos de desgoverno, imprudência e imperícia presidencial, de insistência obsessiva em uma agenda idiossincrática e contrária à normalidade democrática, está claro que não vivemos plena normalidade institucional. Os sinais de anormalidade são muitos: o desmanche da estrutura regulatória do meio ambiente e de proteção das populações indígenas, ambos em evidente contrariedade com a norma constitucional. A redução da autonomia do Ministério Público, por meio do controle da Procuradoria Geral da República por um procurador submisso à vontade presidencial, muito provavelmente no afã de conquistar a gratidão de Bolsonaro e cobiçada nomeação para o Supremo Tribunal Federal. O controle da Polícia Federal, por meio da Diretoria Geral. São todos exemplos eloquentes e quantificáveis de enfraquecimento de mecanismos essenciais de freios e contrapesos democráticos ao arbítrio presidencial.
A atitude de negação e omissão do Governo Federal constitui lesão flagrante dos quesitos constitucionais que estabelecem como responsabilidade e dever do Presidente da República e seus ministros a proteção da saúde e a observância do direito integral à saúde. Constituem, ademais, crimes de responsabilidade. A omissão de socorro, evidente na inércia do presidente e do ministro da Saúde no preparo e implementação do plano nacional de vacinação e no aparelhamento do SUS, em todo o território nacional, para que possa atender aos casos de Covid-19 que se multiplicam, é crime de acordo com o artigo 135 do Código Penal, passível de punição com a prisão em pena triplicada em caso de morte. O presidente não tem imunidade por crimes comuns cometidos no exercício do mandato. Muito pelo contrário. Em condições de normalidade constitucional, Bolsonaro já deveria estar respondendo a processo de impeachment por crime de responsabilidade, crime contra a administração pública e descumprimento recorrente de preceito constitucional. O general-ministro da Saúde também já deveria estar respondendo a processo de impeachment. Ambos deveriam também estar sendo processados por crime comum, de omissão de socorro. O fato de não haver reação institucional proporcional e compatível com a gravidade das ofensas à lei, à Constituição e à sociedade brasileira por parte de Bolsonaro e seus ministros também revela disfuncionalidade nos mecanismos de checks and balances, freios e contrapesos democráticos.
No momento, a única instituição que ainda impõe limites ao presidente e adota medidas para compensar seus erros e omissões é o Supremo Tribunal Federal. A mais recente medida neste sentido, foi a liminar do ministro Ricardo Lewandowski estendendo a validade de provisões das leis 13.979 e 14.035, até 31/12/21, para além do prazo de vigência do decreto presidencial reconhecendo estado de calamidade pública. Os artigos cuja validade foi estendida deverão ficar em vigor até que o Congresso os revogue. A decisão assegura o uso emergencial por estados e municípios de vacinas aprovadas pelas agências dos Estados Unidos, China, Japão ou Europa, desde que não tenham sido liberadas pela Anvisa em até 72 horas após o pedido. O simples fato de um pedido desta natureza ser encaminhado ao STF e acolhido em medida cautelar já é um sinal evidente de anormalidade na condução do Governo Federal.
A decisão de Lewandowski transfere para o Legislativo a faculdade de interromper a vigência extraordinária dos artigos das duas leis. Também é sintomática. Como as leis só valeriam enquanto durasse a decretação do estado de calamidade pública pelo Presidente da República fica patente a falta de confiança no discernimento de Bolsonaro para manter as medidas de prevenção e remediação da pandemia.
É exatamente por não termos um quadro de normalidade institucional que o não-alinhamento automático das agendas do Legislativo e do Executivo se torna necessário à proteção da democracia, do estado democrático de direito. É medida de precaução contra o avanço do arbítrio presidencial. Neste caso, o poder de agenda presidencial é desrecomendável. O que se aplica é a reconquista do poder de agenda pelo Legislativo.
Daí a importância capital da eleição para as Mesas Diretoras das duas Casas do Congresso Nacional. A estabilidade democrática depende da escolha pelos deputados e senadores para presidir a Câmara e o Senado dos candidatos mais comprometidos com a autonomia soberana do Legislativo, com o comando incondicional de agenda no plano político. Por isso nada têm de descabidas as exigências dos partidos de esquerda de que o candidato patrocinado por Rodrigo Maia (DEM-RJ),deputado Baleia Rossi (MDB-SP), se comprometa especificamente com determinadas questões fundamentais. Quais são? Fazer tramitar projetos de decretos legislativos, que têm o poder de anular atos do Presidente da República; pedidos de convocação de ministros, que determinam comprecimento compulsório para prestar contas à Casa parlamentar por seus atos, ao contrário do mero convite de praxe; pedidos de impeachment. Faz todo sentido compelir o futuro presidente da Câmara a examinar e fazer correr pedidos de impeachment. O engavetamento discricionário, do qual o próprio Rodrigo Maia abusou, não é razoável. Se for para ser arquivado, que o seja por deliberação nominal do plenário. Bolsonaro comete crime de responsabilidade serialmente. É preciso que, pelo menos, passe a considerar a possibilidade do impeachment como um fator possível de inibição da prática continuada de crimes.
O senadores deveriam seguir o mesmo caminho: formação de uma coalizão de oposição ao candidato dócil ao Planalto e escolha de um senador da mesma forma comprometido com a independência legislativa, para disputar a presidência da Mesa Diretora do Senado. No caso do Senado, a diferença é que o atual presidente, Davi Alcolumbre patrocina candidato de Bolsonaro. Logo, a coalizão será de oposição a Alcolumbre e ao ungido por ele e Bolsonaro.
O fortalecimento da agenda institucional apoiada por uma coalizão multipartidária e multi-ideológica em defesa da democracia é o caminho para restaurar na plenitude o papel essencial do Legislativo de fiscalização e controle dos atos do Executivo. Mais ainda, a eleição no Poder Legislativo com a participação dessas frentes democráticas, terá um efeito de aprendizado que pode levar a iniciativas similares para as eleições majoritárias de 2022.