O processo de impeachment nos Estados Unidos, que acabou levando ao impeachment de Donald Trump pela segunda vez, fato inédito na história dos Estados Unidos, é bastante diferente do procedimento brasileiro. Nos EUA, a Câmara tem papel mais decisivo. Uma vez aprovados os artigos de impeachment pela maioria, ela está legalmente impedido. Seu afastamento, porém, depende do julgamento no Senado. Por isso, Trump já é considerado como tendo sofrido duplo impeachment. Foi absolvido pelo Senado no primeiro. O segundo, só deve ser julgado após Trump ter deixado o cargo. Uma situação singular, que pode terminar judicializada. É um processo eminentemente político, previsto pela Constituição. Mas, os procedimentos são definidos por duas Comissões, de Justiça e de Regras, da Câmara dos Deputados, de Justiça e de Regras e Administração, do Senado. O Legislativo, portanto, tem pleno controle e total autonomia para conduzir um processo que é assumidamente político.
Assisti a todo o processo para o segundo impeachment de Donald Trump, discurso por discurso, voto por voto, não tanto por interesse no desfecho anunciado — estava claro que a maioria Democrata o aprovaria — mas no comportamento do partido Republicano e nos procedimentos. Meu interesse no partido no poder era ver o teor das divisões partidárias que apareceriam. Ela é chave para a interrupção definitiva da aventura autocrática de Trump na política americana, mesmo que o Senado não o julgue culpado por altos crimes e infrações. Prestei atenção nos procedimentos e na dinâmica política do debate e da votação para retirar lições para o aperfeiçoamento do impeachment no Brasil.
O partido Republicano dividiu-se em três grupos: o pequeno grupo de 10 deputados que falaram e votaram contra Trump; o grupo que condenou Trump, considerando-o culpado pelo ataque ao Capitólio, mas opôs-se ao impeachment porque considerou que não houve o devido processo de investigação dos crimes. Provavelmente buscaram, também, minimizar o risco de perder apoio nas suas bases, onde ainda pode haver apoiadores de Trump. E o grupo que defendeu o presidente, alguns até acusaram o partido Democrata pelo ataque, que interpretou como uma resposta às manifestações do movimento black lives matter que terminaram em depredações e violência. Mas, as fraturas no partido são múltiplas e vão muito além dos 10 dissidentes. Há, hoje, um confronto corrosivo entre os que mantiveram sua defesa de Trump e são acusados de terem ajudado na invasão do Congresso e a maioria republicana que se sentiu ultrajada pelo que chamam de dessacralização do Capitólio. No Senado, começam a se ouvir as vozes daqueles que concordaram com a decisão da Câmara de aprovar o impeachment. Tudo indica que votarão para condenar Trump. Podem chegar a dezessete ou mais dos votos e levar aos 2/3 necessários. Mitch McConnell, o número um na hirarquia do partido no Senado, não tem poupado críticas a Trump e alertas sobre os danos que causou ao GOP. Trump, como todo autocrata incidental, é autocentrado e não dá a mínima para o estrago que produz no partido Republicano. McConnell e muitos outros senadores dão. Aqui, Bolsonaro, uma cópia medíocre de Trump, já mostrou seu desprezo pelos partidos e sua voracidade narcísica, que não poupa estruturas, nem pessoas que o descontentem. Sãos destruidores de instituições, como ficou patente nos espantosos eventos de Washington que precederam o segundo impeachment de Trump.
Esta divisão entre os Republicanos é até mais importante do que o impeachment em si, porque será por meio dela que se poderá estimar a probabilidade de retirar Trump da vida político-eleitoral e do próprio partido. O líder da maioria Republicana no Senado, Mitch McConnell, que passará a líder da minoria em breve, já falou a seus pares sobre a necessidade de expelir Trump do partido. É o que importa. A breve e incidental passagem de Donald Trump pelo poder já causou danos demais à democracia americana e à geopolítica global.
O processo de impeachment tem muitos detalhes. Não pretendo entrar em todos eles. Neste segundo impeachment de Trump, as comissões de Justiça e a de Regras definiram os procedimentos por maioria. As regras deram seis horas para o debate. Os Republicanos queriam 12 horas, mas reconheceram que a decisão foi tomada de forma democrática. O debate em si foi uma lição de disciplina procedimental. Os líderes de cada partido receberam sua cota de tempo e indicaram a quem presidia a sessã quem teria a palavra a cada momento e por quanto tempo. Em muitos casos, um parlamentar recebeu não mais que trinta segundos para fazer seu ponto. Algumas vezes, o parlamentar pedia alguns poucos segundos a mais para concluir, o líder indicava sua aprovação e quem presidia concedia o adicional. Outros, que fariam intervenções mais importantes, receberam quatro, cinco minutos. O tempo era rigorosamente aplicado pela pessoa presidindo a mesa e respeitado pelos que tinham a palavra. O total de tempo usado e o total de tempo restante para cada líder foi controlado por quem presidia a sessão e o líder podia perguntar quanto tempo lhe restava, para se orientar. E isto aconteceu com frequência.
A distribuição do tempo é um jogo estratégico meticuloso, no qual cada líder busca: maximizar o número de representantes que terá a palavra e administrar o tempo para poder responder às posições mais discutíveis e relevantes do outro lado. Também busca reservar tempo final suficiente para as considerações finais, a cargo dos líderes da minoria e da maioria. Para isso, cada um podia administrar o tamanho da cota de tempo que distribuia a seu colegas ou passar a vez ao líder do outro partido, para economizar sua cota, fazendo “reserva de tempo”. Isso era feito, em geral, após intervenções de menor impacto ou relevância. Encerrado o debate, os representantes votaram o artigo de impeachment, por modo eletrônico e o painel registrou a evolução do voto por partido e dos independentes. Não há declaração de voto, nem chamada nominal.
Se comparamos esses procedimentos com aqueles adotados na constrangedora sessão da Câmara que aprovou o impeachment de Dilma Rousseff, vemos o quanto nossos procedimentos são falhos. Nos EUA, não só as regras podem variar, de acordo com o tipo de ofensa a ser investigado, umas requerem mais investigação e debate do que outras, mas elas disciplinam melhor o uso da palavra. Não haveria espaço para declarações abjetas, como a de Jair Bolsonaro homenageando um torturador e fazendo pouco da dor da presidente e de todos que passaram por torturas no regime militar. Fora o fato de que, se dissesse isso em plenário, em qualquer ocasião, pelas regras de decoro da Câmara de Representantes dos Estados Unidos teria a palavra cassada e poderia ser submetido a julgamento disciplinar por quebra de decoro. Apesar da lembrança amarga daquele espetáculo de baixaria, ainda me oponho ao rebaixamento do papel da Câmara dos Deputados no impeachment, determinada pelo Supremo Tribunal Federal, no caso de Dilma Rouseff. Não foi assim, no de Collor. As regras americanas evitam esse tipo de degradação comportamental. Mas, a única profilaxia para expurgar esse tipo de gente do Congresso é o voto consciente, bem informado. Nos Estados Unidos, o processo fica sob inteiro controle do Legislativo e não há espaço legal para sua judicialização. No caso deste segundo impeachment de Trump, haverá uma brecha para judicialização, caso o Senado o condene após deixar o cargo. Como não há precedente no caso de presidentes — isso só aconteceu em julgamentos de ocupantes de cargos de outros escalões — poderia caber indagar à Corte Suprema sobre sua constitucionalidade. Os advogados de Trump poderiam, talvez, fazer esta contestação.
Caso o impeachment posterior à saída fosse considerado inconstitucional, mesmo na eventualidade provável de ser recusado pelo Senado, caberia, ainda, determinar a inelegibilidade de Donald Trump, para qualquer cargo público, usando a seção 3 da emenda 14a à Constituição. Ela diz o seguinte: nenhuma pessoa pode ser Senador ou Representante no Congresso, ou eleitor do Presidente e Vice Presidente, ou exercer qualquer cargo, civil ou militar, nos Estados Unidos, ou em qualquer estado da União, que, tendo previamente jurado defender a Constituição para exercer cargo federal, tenha participado de insurreição ou rebelião contra a Constituição, apoiado ou auxiliado os seus inimigos.
Ao que tudo indica, o número de republicanos dispostos a impedir a continuidade da carreira política de Trump é maior do que o daqueles dispostos a aprovar o impeachment, sobretudo em rito sumário. Há proposta de formação de uma comissão bipartidária na Câmara para investigar a sedição e este pode ser um dos caminhos para propor a adoção da 14a emenda. A punição pode se estender àqueles que forem julgados responsáveis pela tímida atitude das forças de segurança que terminaram por permitir, se não propiciar, a invasão do Congresso.
Um outro aspecto relevante a anotar em relação ao processo americano é em relação à sua própria natureza. Ele é um processo político e assumidamente político. O líder da maioria Republicana no Senado, Mitch McConnell, ao responder se seria um jurado imparcial, disse que não. “Este é um processo político. Nada há de judicial nele.” No Brasil, ele é legalmente definido como um processo jurídico-político, um impossível hibridismo. Não existe a possibilidade concreta de que um processo seja simultaneamente político e jurídico. Torna-se um arremedo de processo judicial, com motivações e procedimentos inteiramente políticos. Esta ambiguidade irremediável, permite sempre a um dos lados contestar a pretensa isenção do processo. Sua legitimidade é sempre controvertida.
Nos dois casos de impeachment de presidentes brasileiros, Collor e Dilma, os presidentes do Supremo Tribunal Federal que conduziram o julgamento no Senado, o ministro Sydney Sanches e o ministro Ricardo Lewandowski, respectivamente, tiveram comportamento nitidamente inspirado por pressões e motivações políticas. Fiz uma análise detalhada desses dois processos em meu livro Presidencialismo de Coalizão: Raízes e evolução do modelo político brasileiroo (Companhia das Letras, 2018).
O impeachment de Trump era necessário. A invasão de Capitol Hill por uma turba convocada por ele, mobilizada por ele e inflamada por ele, como disse a deputada republicana Liz Cheney, terceira na hierarquia de seu partido na Câmara, filha do ex-vice de George W. Bush, um Republicano da ala mais conservadora, não podia deixar de ter uma reposta política à altura. Seu afastamento da política, por esta via ou por outra, é essencial para a recentralização ideológica do partido Republicano e para reduzir a polarização disfuncional que ameaça a democracia americana. Desta forma, o país retornaria à polarização bipartidária funcional, baseada em pautas distintas para as políticas públicas, mas sem extremismos e sem descontrole emocional.