A posse do presidente e da vice-presidente dos Estados Unidos marcou o primeiro dia do futuro daquele país, depois do mergulho em um passado caótico e violento. O passado idealizado por Trump nunca existiu, mas ele conseguiu fazer o país retroceder décadas. Em alguns momentos, parecia que os Confederados tivessem ganhado a Guerra Civil, culminando com a entrada forçada da famigerada bandeira confederada na invasão barbárica do Capitólio. Trump não conseguiu o passado idealizado, mas produziu um trágico pesadelo com seu desgoverno desatinado. Agora, os Estados Unidos voltaram ao futuro.
A posse de Joe Biden e Kamala Harris foi marcada por ineditismos bons e maus. O principal evento inédito do bem, foi a posse da primeira mulher como vice-presidente. E não só mulher, o que já bastaria para ser uma posse realmente inaugural, mas, também, uma negra, filha de imigrantes que chegaram adultos ao país. Seu pai, negro, veio da Jamaica. Sua mãe, asiática, da Índia.
O fato inédito do mal, foi a ausência de Trump. O único presidente a não transmitir o cargo ao sucessor. Mas, lá estavam três republicanos da direita do partido, fazendo as honras da tradição democrática, o ex-presidente Georde W. Bush, o vice-presidente Mike Pence e o então líder da maioria, Mitch McConnell. E se Trump comparecesse daria dignidade a um fim indigno da sua passagem pela Presidência.
A cerimônia de posse em Washington é um rito elaborado. Não vou descrevê-lo por inteiro, mas é bom relembrar alguns passos. Começa com a saída do presidente-eleito da Blair House, a casa para hóspedes ilustres da Presidência (vips), para o culto da persuasão dele. De lá, o casal segue para a Casa Branca, onde recebe do casal de saída as chaves da residência e sede oficial. De lá, o presidente e o presidente-eleito deveriam seguir juntos na mesma limousine, para poderem conversar a caminho do Capitólio, para a posse. Uma vez lá, há o compromisso de lealdade ao país e à Constituição, o hino, o juramento das pessoas eleitas para vice e presidente.
Todos os antecessores vivos se fazem presentes, para mostrar a sequência inquebrantável de rotação no poder. Quando Obama tomou posse, por exemplo, estavam presente dois ex-presidentes republicanos, os Bush, pai e filho, e dois democratas, Carter e Clinton. Desta vez, o único ausente foi Carter, que tem a saúde muito frágil. Bush estava na posse de Biden e seguiu com o presidente, a vice-presidente e os dois ex-presidentes democratas até o cemitério de Arlington, para a homenagem aos combatentes mortos no túmulo do soldado desconhecido. Há outras etapas, algumas, que supõem aglomeração, como o almoço no Congresso, que não ocorreram este ano, por causa a pandemia. Os três ex-presidentes presentes gravaram uma manifestação em defesa da democracia, da transferência pacífica de poder e se disseram dispostos a colaborar com Biden, naquilo que precisar deles. Clinton transferiu o governo para Bush, que transferiu para Obama, que transferiu para o renegado Trump, que não transferiu o governo para Biden. Daí a necessidade desta manifestação, também com muita carga simbólica, mais do que política, de defesa dos valores da democracia.
Oito senadores republicanos se dispuseram a conversar com a equipe econômica de Biden para discutir seus projetos para a emergência que o país e o mundo vivem. São muitos os erros e omissões no legado do desgoverno de Trump. Um deles, a ausência de um plano de vacinação e de estoques de estratégicos, é apenas um deles. A colaboração dos senadores será suficiente para dar uma marca bipartidária no que o Congresso aprovar, ainda que de forma negociada, porque gasto público é uma questão na qual o Legislativo tem muito poder de agenda, mesmo quando a iniciativa é do presidente. É menos do que o necessário para o impeachment. Mas, há uma probabilidade não desprezível de que cheguem a 17 republicanos para condenar Trump.
Os brasileiros podem considerar todo esse ritual elaborado demais. Mas, o rito tem muita importância. A democracia, eu já escrevi aqui, requer certas formalidades. Elas contribuem para reforçar e internalizar valores democráticos embutidos em certas regras básicas de civilidade republicana, de rotatividade no poder e de união, independente da cor partidária, nos momentos significativos de cumprimento dos princípios constitucionais fundadores. É, afinal, o momento de concretização da escolha popular.
O rito fortalece o sentimento democrático e, este, revigorado, contribui para a resiliência da democracia. A democracia é um regime frágil. Biden reconheceu isto, ao dizer em seu discurso que a “democracia é preciosa, mas é frágil”. Ela tem uma fragilidade intrínseca, que define sua própria natureza, a de tolerar a presença institucionalizada de seus adversários e, às vezes, inimigos. Se não tolera a dissidência, deixa de ser democracia. Só não perde sua qualidade definidora, quando reprime inimigos que se armam contra ela e pretendem exterminá-la. Mas, para poder se defender neste limite, ela precisa que suas regras tenham a firme adesão da sociedade e estar sob um governo que tenha legitimidade e a confiança da maioria.
Terminado o ritual, Biden assinou ordens executivas, a maioria retificando más decisões, tomadas arbitrariamente por Donald Trump.Foram, ao todo dezessete ordens executivas revertendo decisões de Trump no plano dos valores: transparência governamental, tolerância e solidariedade com imigrantes, igualdade e justiça das relações raciais e de gênero, apoio à educação e à ciência. Outro conjunto de decretos fez o mesmo no campo da mudança climática e do meio ambiente, destacando-se o retorno ao Acordo de Paris. Uma terceira série destinou-se a dar início às ações para enfrentar a pandemia, destacando-se o retorno à Organização Mundial de Saúde e a determinação de máscaras em áreas de jurisdição federal. Os estados têm autonomia para decidir sobre o uso obrigatório de máscaras em seu território. A maioria, porém, já havia adotado esta medida.
Para marcar sua prioridade, Biden assinou, diante das câmeras, três delas. A primeira, determinou a obrigatoriedade do uso de máscara em prédios federais e nos transportes aéreo e ferroviário. A segunda, marcou o reingresso do país no Acordo de Paris sobre mudança climática. A terceira, destinada a autorizar a reentrada na Organização Mundial da Saúde e a participação dos EUA no esforço global para debelar a pandemia. Duas delas, a primeira e a terceira, claramente voltadas para o combate à pandemia. Duas, a segunda e a terceira, também representando a reconversão do governo dos Estados Unidos ao multilateralismo.
Logo sem seguida, o presidente assinou uma outra ordem, regulando a política de transparência governamental, muito enfatizada por sua Secretária de Imprensa, Jen Psaki na primeira coletiva de imprensa da administração Biden. Vários jornalistas que cobrem ou cobriram a Casa Branca disseram que foi o primeiro em mais de um ano para ser levado a sério. Psaki disse que o objetivo do presidente e seu compromisso é de “trazer de volta ao governo a transparência e a verdade e compartilhar a verdade, mesmo quando ela for difícil de ouvir”.
Kamala Harris também começou a trabalhar, logo em seguida à cerimônia, na presidência do Senado. Deu posse a três senadores democratas. Empossou seu sucessor no Senado, o latino Alex Padilha, que era o Secretário de Estado da Califórnia e foi indicado pelo governador Gavin Newson (D). Os outros dois foram os eleitos pela Georgia, no disputadíssimo segundo turno que definiu a maioria democrata. Um negro, Raphael Warnock, e outro judeu, Jon Ossoff. Acabou tendo certo simbolismo de retorno ao pluralismo e à diversidade, que a eleição de Biden buscou expressar na coalizão que a apoiou, na campanha e no ministério.
O retrocesso corrigível de imediato e no curto prazo será corrigido. Houve danos duráveis à convivência civil entre cidadãos. O recrudescimento do racismo e da rejeição de imigrantes gerou um ambiente rarefeito, difícil de reoxigenar. A própria democracia americana saiu muito fraturada desse caótico período de agressão às instituições. Os danos duráveis, só o tempo e a história do futuro dirão se e quando serão superados.
É uma lição importante para o Brasil. Governantes incidentais e tóxicos, como Trump e Jair Bolsonaro, não podem ficar muito tempo no poder, sob o risco de se perder a democracia. Por outro lado, incitam tanto ódio e tanta violência, que fraturam a sempre frágil tessitura da convivência republicana entre os cidadãos. Bolsonaro também não conseguiu e não conseguirá estabelecer o passado autoritário, armado e castrense que idealizou. Mas já nos mergulhou em um trágico pesadelo, que nos leva a um passado tecido por retrocessos, absurdos diários e muita morte.