O deputado Arthur Lira é réu em dois processos da Lava Jato no Supremo Tribunal Federal. Em princípio, não poderia presidir a Câmara. Mas, este impedimento caiu em um dos episódios mais sombrios do processo de politização do Judiciário, no contexto de crescente judicialização da política. Renan Calheiros era presidente do Senado e se tornou réu em processo no Supremo Tribunal Federal. Em decorrência, deveria ser afastado da Presidência do Senado, por isonomia ao que a Constituição determina para o Chefe do Executivo, quando este se torna réu.
Os presidentes das duas Casas do Legislativo são substitutos eventuais do chefe do Executivo no impedimento deste e do vice-presidente. Não há uma linha sucessória, porque só o vice-presdente da República pode ocupar definitivamente o cargo de presidente, no caso de impedimento permanente, por morte, impeachment ou renúncia do titular do cargo. No caso de impedimento de ambos, presidente e vice, o substituto eventual assume o cargo temporariamente e deve convocar novas eleições. Elas serão diretas, se a vacância se der na primeira metade do mandato presidencial, e indiretas, se ocorrer na segunda metade.
A possibilidade de um parlamentar presidir uma das Casas do Congresso sendo réu tem história recente. Ela resultou do que chamei, na época, um acordão no Supremo Tribunal Federal, para evitar o que consideravam iminente crise institucional. Na verdade, o que ocorreu foi um conflito entre Poderes, provocado pelo então presidente do Senado, Renan Calheiros. O ministro Marco Aurélio Melo, relatando processo decorrente de um inquérito contra Calheiros, ao aceitar a denúncia contra ele, determinou o seu afastamento da presidência do Senado, por ele ter se tornado réu. O ministro seguia a lógica jurídica de isonomia entre os Poderes, segundo a qual se um réu não pode ocupar a chefia do Executivo, também não poderia ocupar a presidência de uma das Casas do Legislativo, dado que não pode haver hierarquia entre Poderes independentes e harmônicos. Calheiros insurgiu-se contra a ordem judicial, o Senado deu-lhe apoio e a questão foi levada ao plenário do STF. Nele, deu-se o acordão e a vitória de Renan Calheiros, que forçou uma interpretação exótica da Constituição. Relatou o então decano, Celso de Mello, para dar uma tintura de nobreza a uma decisão na qual a doutrina constitucional curvou-se à conveniência política.
Veja-se o que escreveu, o relator na súmula da questão, o então decano, Celso de Mello, convalidou interpretação muito flexível, o controle concentrado de constitucionalidade. “Os substitutos eventuais do Presidente da República – o Presidente da Câmara dos Deputados, o Presidente do Senado Federal e o Presidente do Supremo Tribunal Federal (CF, art. 80) — ficarão unicamente impossibilitados de exercer, em caráter interino, a Chefia do Poder Executivo da União, caso ostentem a posição de réus criminais, condição que assumem somente após o recebimento judicial da denúncia ou da queixa-crime (CF, art. 86, § 1º, I). Essa interdição, contudo – por unicamente incidir na hipótese estrita de convocação para o exercício, por substituição, da Presidência da República (CF, art. 80) –, não os impede de desempenhar a chefia que titularizam no órgão de Poder que dirigem, razão pela qual não se legitima qualquer decisão que importe em afastamento imediato de tal posição funcional em seu órgão de origem. A ratio subjacente a esse entendimento (exigência de preservação da respeitabilidade das instituições republicanas) apoia-se no fato de que não teria sentido que os substitutos eventuais a que alude o art. 80 da Carta Política, ostentando a condição formal de acusados em juízo penal, viessem a dispor, para efeito de desempenho transitório do ofício presidencial, de maior aptidão jurídica que o próprio chefe do Poder Executivo da União, titular do mandato, a quem a Constituição impõe, presente o mesmo contexto (CF, art. 86, § 1º), o necessário afastamento cautelar do cargo para o qual foi eleito. [ADPF 402 MC-REF, rel. p/ o ac. min. Celso de Mello, j. 7-12-2016, P, DJE de 29-8-2018.]
A “ratio”, ou razão, aventada pelo relator é um primor. Para, segundo ele, preservar a respeitabilidade das instituições republicanas, admite que as duas Casas do Legislativo, ao contrário do Executivo, podem ser presididas por réus. Esta é a razão política. A razão jurídica é torturada, para ver apenas um dos lados da isonomia entre os Poderes. Seria um privilégio permitir que um réu ocupasse, ainda que interinamente, a chefia do Poder Executivo, dado que o seu titular legítimo teria que ser afastado, se passasse a acusado em um processo judicial. Mas, a lógica da exegese constitucional não acolhe a exceção que dá aos chefes do Poder Legislativo a faculdade de permanecerem na presidência de qualquer uma das Casas, mesmo tendo passado a réus em processo judicial.
Se ganhar a presidência da Câmara, o deputado Arthur Lira terá se beneficiado do privilégio imposto por Renan Calheiros, ao insurgir-se contra ordem judicial e sair vitorioso no STF.