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8/1: O golpe inacabado

O que se lembra hoje, neste 8/1/24, é uma tentativa de golpe de estado para anular eleições legítimas e corretas e transformar à força a democracia brasileira em autocracia. Foi um golpe inacabado. A tentativa fracassou, mas os golpistas mais importantes ainda mentem, conspiram circulam livremente. Proponho, para entendermos a extensão do golpe, que o analisemos por partes.

A anatomia do golpe revela sua estrutura e suas articulações. A dinâmica, revela o modo pelo qual se tentou leva-lo a cabo. As sequelas indicam por que se trata de um golpe inacabado e não simplesmente uma tentativa que fracassou e se esgotou ao não se consumar. Em todos esses três planos há ainda lacunas que precisam ser preenchidas pelas investigações.

A anatomia do golpe

Foi um movimento articulado, bem organizado e bem financiado, com uma característica peculiar que o distingue de outras tentativas bem sucedidas e fracassadas de golpe de estado. A melhor síntese da sucessão articulada de atos de mobilização golpista, que ajuda a desenhar a anatomia do golpe, foi de Celso Rocha de Barros em sua coluna na Folha de São Paulo. Ele mostra que o 8/01 foi antecedido por dois meses de agitação golpista, após a derrota de Bolsonaro em outubro de 22. Houve bloqueios de estradas, a tentativa de explodir uma bomba no aeroporto na véspera do Natal, a ocupação de ruas de Brasília e a tentativa de invasão da sede da Polícia Federal. Tudo conspirado nos gabinetes mais íntimos do poder, com empresas de vários ramos comprometidas com a viabilidade financeira do processo golpista.

No dia 8/1, além da invasão e depredação das sedes dos Três Poderes, houve bloqueios de refinarias em cinco estados e de rodovias em quatro estados. A simultaneidade desses eventos elimina qualquer hipótese de manifestações espontâneas. Elas foram articuladas, faziam parte da anatomia do golpe. Formam um arcabouço evidente com uma cabeça estruturante, circulação de recursos para manter a estrutura em pé durante muito tempo, braços executores e mecanismos de mobilidade e logística.

A dinâmica do golpe

A conspiração golpista envolveu autoridades civis e militares, empresários e parlamentares. As investigações sobre, por exemplo, a participação do ajudante de ordens de Bolsonaro, coronel Mauro Cid, trouxeram evidências de parte dessa conspiração golpista e do planejamento do 8/1. O planejamento operacional e organização das células de ataque foi realizado de forma sistemática nos acampamentos em frente a quartéis, com a conivência de oficiais generais e de generais-comandantes. Hoje sabemos que houve também proteção dos acampados pelo menos por parte do então comandante do quartel general do Exército, conhecido como Forte Apache. Os depoimentos de autoridades colhidos para o documentário de Julia Duailibi e Rafael Norton, 8/1 A democracia resiste, dão conta da cobertura oferecida pelo general que impediu sua prisão naquele mesmo dia e possibilitou a fuga de muitos, provavelmente de várias lideranças de células ali acampados.

O objetivo desse conjunto de eventos era criar uma situação de desordem civil generalizada que levasse à decretação de uma operação de garantia da lei e da ordem, GLO, que concede provisoriamente aos militares poder de polícia até o restabelecimento da normalidade. Quem pode decretar uma GLO é o presidente da República, mas ele pode ser instado a fazê-lo por governadores e pelos outros Poderes. Vejam que a desordem espalhada pelo país pretendia induzir pressões sobre o presidente Lula para decretar a GLO, poucos dias após a sua posse e convencer os militares a intervir. A decisão de não fazê-lo e, em lugar disso, decretar a intervenção no governo do Distrito Federal, foi essencial para abortar a tentativa de golpe.

A mobilização mental e ideológica para espicaçar as emoções extremadas de ódio e repulsa se deu por meio de lives, posts em diversas plataformas digitais, mensagens em grupos de WhatsApp e, principalmente, de Telegram, discursos e declarações do ocupante da presidência da República, Jair Bolsonaro, e de parlamentares de sua tropa de choque. Disseminavam mentiras, ódio e repulsa a Lula e ao PT, teorias conspiratórias atribuindo a Lula as intenções autocráticas que eram de Bolsonaro.

As falanges golpistas saíram do acampamento em frente ao quartel general do Exército com lideranças para cada uma delas, mascaradas e munidas de rádios para se combinarem. Essas lideranças orientavam as falanges e portavam mapas dos prédios a serem invadidos. Nada era espontâneo, a invasão e depredação dos prédios não resultou de uma turbamulta descontrolada.

O que faltou para que o golpe se consumasse? A chegada do exército. As lideranças das falanges desapareceram ao perceber que não haveria GLO e intervenção dos militares. Só então deixaram a turba solta para ser presa.

A peculiaridade do golpe foi o asilo prévio do principal beneficiário, Jair Bolsonaro, em Miami. Outra singularidade foi a extemporaneidade da tentativa de golpe, transferida para depois da posse de Lula. A viagem também para Miami do ex-ministro da Justiça, que era do grupo de planejamento político de Bolsonaro, e havia sido providencialmente nomeado secretário de Segurança do Distrito Federal, desativou o esquema de segurança que deveria ser acionado para impedir que a marcha programada para aquele dia deteriorasse em desordem e depredação. Essa distância prévia diz muita coisa. O silêncio, às vezes, é eloquente.

O governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, com sua oportuna soneca foi no mínimo conivente por omissão com a tentativa golpista. Sua ausência na cerimônia institucional de hoje, um ano após esses eventos infames, para reafirmar a convicção democrática dos Três Poderes da República, indica mais do que pura omissão.

As sequelas da tentativa de golpe

O 8/1 deixou sequelas. As instituições não estão ainda integralmente reconstituídas. As responsabilidades de parlamentares na preparação do golpe ainda não foram apuradas. Eles continuam com a operação mentira, tentando atribuir a responsabilidade pelos atos golpistas ao governo-vítima, que em nada se beneficiou deles. As investigações ainda não chegaram aos autores intelectuais, incitadores e financiadores. É um pouco como a restauração das peças destruídas no Planalto, no Congresso e no Supremo Tribunal. Algumas já estão restauradas, outras, não.

O Ministério Público, especialmente a sua cúpula, a Procuradoria Geral, PGR, ainda não demonstrou estar totalmente comprometido com a apuração e punição da rede golpista. Os nódulos articuladores e de financiamento dessa rede ainda estão quase intocados. Como tenho afirmado, basta dar uma resposta fundamentada em provas — abundantes — à pergunta a quem beneficiaria o golpe?

Por que um golpe inacabado e não fracassado? Porque ainda há golpistas ativos na política e na economia do país. Os inquéritos ainda não alcançaram a parte principal da rede golpista. As ausências, hoje, no evento institucional dos Três Poderes no Congresso Nacional, de celebração da democracia e reafirmação da fidelidade à ordem democrática republicana que se tentou derrubar, podem ajudar a identificar aqueles que se alinham à extrema-direita e desprezam os princípios democráticos.

Nem todas as ausências serão de extremistas autoritários. Alguns são apenas políticos de direita, que não sabem a hora exata de se separar da extrema-direita golpista e autoritária, e demonstrar seu compromisso com a democracia. O que atesta, no mínimo, frágeis convicções democráticas.