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O vexame externo de Bolsonaro

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A parte pública, para fotos, do encontro de Bolsonaro com Boris Johnson foi patética. Bolsonaro foi rude, antidiplomático e mostrou ao mundo, o que o Brasil já sabe: não tem a menor noção dos papéis e responsabilidades de chefe de governo e de estado. Quando está em um encontro de governantes, a opinião pessoal deles não interessa. Como representante do Brasil, Bolsonaro tinha a obrigação de defender a vacina Astrazeneca-Oxford, como fez o primeiro-ministro do Reino Unido. Era um projeto de cooperação bilateral, UK/Brasil, envolvendo uma organização, Fiocruz, que faz parte do estado brasileiro. Tinha, também, o dever de cortesia de mencionar a cooperação bilateral.

Quando Boris Johnson falou do acordo de cooperação bem sucedido, Bolsonaro ouviu em silêncio a tradução com uma expressão abobalhada. A única resposta foi dizer que não havia tomado a vacina e que estava imunizado porque já havia contraído a Covid. Uma vergonha. Boris Johnson também teve Covid e se vacinou, como recomenda a ciência. Bolsonaro foi mau representante do país, desconsiderou todas as regras da diplomacia bilateral, grosseiro e mal educado, nenhuma surpresa neste ponto, mostrou ao mundo que pauta seu comportamento por fake news e teorias conspiratórias. Só lhe cabia reforçar a importância da cooperação pela vacina e dizer que era ótima vacina e que o acordo devia servir de modelo, pois permitiu inclusive a transferência da tecnologia para a Fiocruz, que já começou a produzir domesticamente o IFA e as vacinas.

Mas não se deve esperar bom comportamento de Bolsonaro. Ele é um desviante, seu comportamento destoa de todos os padrões de normalidade. É autoritário e não tem flexibilidade para mudar do caminho que ele define para si. Bolsonaro é absolutista, narcísico, fanático por suas próprias ideias, com procurei mostrar em artigo recente para o Ilustríssima da Folha de São Paulo. “É fácil lembrar a enorme quantidade de afirmações de Bolsonaro, sobre os mais variados temas, nas quais ele se considera uma autoridade incontestável. O mito é obra do mitômano, disseminada pela rede de propaganda e mistificação. Ele acredita fanaticamente na mentira que construiu sobre si mesmo — e sua certeza convence os incautos”. Também escrevi neste pequeno ensaio, que o comportamento de Bolsonaro é “um exemplo quase de manual da personalidade autoritária, com traços graves de rigidez mental, compulsividade, frieza emocional e narcisismo”.

Havia muita aposta no papel do chanceler brasileiro, Carlos Alberto França, para fazer com que Bolsonaro se comporte mais como um estadista do que como um indivíduo incidentalmente no exercício da presidência e alienado do papel público que corresponde ao cargo. Nunca compartilhei essas esperanças.

Nenhum ministro de Bolsonaro fica no cargo e é prestigiado pelo presidente se não estiver completamente alinhado com seus pensamentos. França, como chanceler, não entrou no desvio delirante que seu antecessor, Ernesto Araújo, que demoliu uma parte relevante do trabalho da diplomacia profissional brasileira. Este trabalho deu ao Brasil papel de liderança em vários campos da política internacional e da pauta diplomática global. Mas, como parte da comitiva presidencial, comportou-se nas ruas de Nova York com a mesma deselegância e falta de compostura que os demais.

O prestígio conquistado pelo Brasil no cenário global não teve a ver com poderio econômico ou militar, nem com geopolítica, mas com soft power. Ele decorre do trabalho de uma das mais profissionais diplomacias do mundo, com diplomatas de primeira linha; cientistas que, apesar das dificuldades, projetam o país na cena científica global e em painéis como o do IPCC, que consolida os avanços da ciência global do clima; uma cultura de qualidade, com música, cinema, literatura, artes plásticas também de muito prestígio global. Tudo isso vem sendo negado e demolido pelo governo de Bolsonaro.

Na Assembleia Geral da ONU, Bolsonaro mentiu. Começou dizendo que iria apresentar um Brasil que não se lê nos jornais e não se vê na televisão. Anunciando que seu dicurso se basearia em sua versão pessoal da realidade. Disse muita bobagem que, certamente, o Itamaraty sério não subscreveria. Deu uma interpretação fantasiosa do sete de setembro e falsa sobre a motivação das manifestações.

Na versão delirante do Brasil apresentada por Bolsonaro à ONU, o país estava à beira do socialismo, quando ele assumiu. Quis dar a impressão que seu governo defende a Amazônia e as terras indígenas, como se o mundo não soubesse que faz o contrário. Inventou que o desmatamento caiu em seu governo. O desmatamento e as queimadas criminosas na Amazônia estão em todos os jornais e televisões do mundo. O desprezo de seu governo pelos direitos das populações indígenas e a ameaça representada pelo marco temporal, também estão na pauta de todo o mundo. Mentiu ao dizer que os povos indígenas querem explorar a agricultura e outras atividades em suas terras.

Defendeu posições anticientíficas, como o “tratamento precoce”. Afirmou que seu governo é contrário ao passaporte sanitário. Desferiu críticas à mídia global e aos cientistas que não concordam com suas teses, saídas de teorias da conspiração e convicções descabidas. Um discurso vergonhoso.

Desenhou um quadro econômico que só ele e seu ministro da Economia vêem. Uma economia pujante, em franca recuperação, credibilidade internacional recuperada, um dos melhores desempenhos dos emergentes, grande atração de investimentos.

Na abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas, Bolsonaro foi Bolsonaro. Não incorporou o papel de chefe de estado, nem honrou a tradição que dá ao Brasil a primazia da primeira palavra de chefes de estado. Não mostrou grandeza, nem visão global. Falou para o seu público interno. Não fez qualquer ponto relevante sobre o que angustia o mundo hoje: pandemia, mudança climática, migração, recuperação pós-pandemia.