A dificuldade de se entender a singularidade chinesa faz com que muitas previsões consideram a China uma economia capitalista, apenas muito maior. Não é assim. O híbrido chinês de direção estatal e economia de mercado não se compara sequer à fase social-demcrática da economia social de mercado na Alemanha. A dificuldade específica dos analistas, quando comparam China e Brasil tem a ver com uma diferença crucial entre os dois países. O Brasil pensa de um dia para o outro. A China pensa o amanhã. Tem sempre uma perspectiva de longo prazo. Seu plano é de dez anos e é seguido com razoável disciplina com as variações definidas para cada quinquênio e as atualizações anuais pontuais.
Claro que há muita dificuldade de coordenação central, porque as províncias são muito autônomas e, num país da magnitude da China, não dá para controlar todas elas. Xi ampliou o controle ideológico a níveis apenas comparáveis aos da revolução cultural de Mao. O autoritarismo aumentou, seguindo esse aumento do controle ideológico. Isto em parte se deve às dificuldades de coordenação e busca aumentar a garantia de que o “pensamento de Xi” será seguido nacionalmente. E, em parte, resulta das crescentes desigualdades que aumentam o descontentamento social e a instabilidade sociopolítica.
Em toda a China, a partir do início do ano letivo, o currículo dos ensinos elementar e secundário deverá incluir uma nova matéria, com o título hiperbólico tão próprio do regime de “O pensamento de Xi Jinping sobre o socialismo com característica chinesa para uma nova era”. O ministério da Educação produziu quatro versões do livro texto para cada grau. É uma forma de internalizar o pensamento do líder e buscar a continuidade intergeracional do modelo chinês. Por outro lado, o descumprimento das diretrizes de Xi pode levar a sanções repressivas por parte do governo central.
O fundamento da nova era chinesa de acordo com o pensamento de Xi é o princípio da “prosperidade comum”. Esta ideia foi originalmente criada por Mao Tsé Tung como orientação para o progresso. Foi retomado por Deng Xiaoping quando iniciou a reforma econômica ao final dos anos 1970. Em 1992, o Partido Communista estabeleceu o propósito de construir a economia socialista de mercado. Sob a liderança de Xi Jinping o programa do partido e do governo adotou o princípio da prosperidade comum para orientar todas as políticas públicas do governo central.
Não é coincidência, nem novidade, que Xi a recicle a ideia de prosperidade comum para “a nova era” do desenvolvimento chinês. Ela foi elevada a princípio prioritário de organização da orientação social do desenvolvimento chinês e do próprio mercado. Por isso, ela tem implicações importantes para as perspectivas para a China no cenário global na próxima década. Se não se entender a economia política da China que, com Xi, moveu-se para um misto curioso e singular de maoísmo e confucionismo, com maior orientação social e dirigismo estatal, qualquer previsão sobre o papel de sua economia na economia global pode errar o alvo.
Boa parte dos problemas que Xi se propõe a enfrentar decorreram do próprio sucesso do modelo chinês, a partir das reformas de Deng Xiaoping. As ilhas de afluência capitalista dele resultantes criaram novas e profundas desigualdades, que cresceram de forma vertiginosa. Até perto do final dos anos 1990, a distribuição de renda da China era relativamente equitativa.
Com a afluência nos mercados avançados a desigualdade aumentou aceleradamente. Essas ilhas de afluência se concentram em não mais de dez províncias. Guangdong, Jiangsu Shandong, Zhejiang e Henan são as cinco maiores. As demais são Sichuan, Fujian, Hubei, Hunan e Shanghai.
A renda dos domicílios urbanos era em média 83% superior à dos domicílios rurais. Em 2009, esta diferença era de 167%, caindo para 132% em 2019. O coeficiente de Gini de desigualdade de renda em 1997 era 0,398, subiu até 0,491 em 2008 e, em 2019, era de 0,465.
A concentração da renda do 1% dos mais ricos subiu de 21%, no final dos anos 1990, para 31% da renda nacional, em 2020. O coeficiente de Gini de concentração da riqueza subiu de 0,599, em 2000, para 0,704 em 2020. A pobreza atinge 600 milhões de pessoas, que têm renda mensal de 150 dólares.
O princípio da prosperidade comum define um processo de desenvolvimento de alta qualidade e o controle social da economia, para distribuir a renda. Para o estado, esse princípio pressupõe políticas fiscal e tributária voltadas para redisbribuir a renda, ampliação da rede de proteção social e da renda garantida para os idosos. No setor privado, esse princípio é traduzido em aumento da responsabilidade social. Princípios socialistas com um substrato confucionista que atribui a proteção dos mais velhos às gerações ativas estão claramente expostos no documento-guia aprovado pelo Comitê Central e pelo Congresso Nacional do Povo que prevê igualdade na alimentação infantil e na educação, renda justa, saúde pública de qualidade para todos, apoio aos mais velhos, habitação e proteção para os mais vulneráveis.
O jornal oficial People’s Daily, diz que o objetivo das políticas de Xi é criar uma sociedade mais igualitária e expandir a classe média pela elevação da renda dos setores de baixa renda.
A três diretrizes fundadoras da nova era Xi foram estabelecidas quando ele entrou para a constituição chinesa como um de seus grandes pensadores, ao lado de Mao e Deng Xiao Ping. Elas são: passou o ciclo de crescimento quantitativo da China, o novo ciclo será de crescimento com qualidade, voltado para dentro e não para fora, com buscando mais qualidade, mais igualdade e maior densidade tecnológica. Este novo ciclo é determinado por três fatores: 1. redução das desigualdades crescentes e promoção do progresso do interior; 2. qualidade da produção e da vida; 3. redução da poluição e política de mitigação da mudança climática. A expectativa é que elas levem ao ciclo de prosperidade comum.
A expansão da classe média e a interiorização do desenvolvimento certamente expandirão o mercado interno chinês. A China continuará importando do resto do mundo, para atender a esta classe média, mas o mercado interno ampliado e a melhoria das condições ambientais serão um incentivo forte para o crescimento da oferta interna. Deve aumentar, entretanto, a produção chinesa para chineses e isto pode afetar várias de suas linhas atuais de importação.
A China não é capitalista como as economias ocidentais. O modelo chinês é de economia socialista de mercado. A lógica é muito diferente da que orienta os mercados das nações capitalistas. Por isso não se deve esperar que a reação do governo às dificuldades da Evergrande seja no mesmo padrão do que ocorreria em uma economia como a americana ou, mesmo, a brasileira. Outra característica da qual não se deve abstrair é o autoritarismo crescente, que responde a dois desafios: o risco de convulsão social e instabilidade por causa da crescente desigualdade e do aumento das dissidências internas resultante da globalização. A repressão pode atingir desde cidadãos de Hong Kong, a professores das universidades e aos donos de capital privado. A insubordinação pode ser estendida inclusive à desobediência pelas empresas do critério de responsabilidade social.