O populismo tem vários componentes. Três deles são essenciais, a ligação direta com o povo, ou demagogia, o atendimento assistencial, o assistencialismo, e a autocracia. Uso demagogia, aqui, não como expressão pejorativa, mas como uma forma de instrumentalização do domínio político sobre as massas. O assistencialismo é diferente de programas focalizados e objetivos de transferência de renda. Ele deve ser formatado e apresentado como uma doação do chefe populista, um ato subjetivo do governante para criar um vínculo de dependência entre ele e a massa de beneficiados. O assistencialismo e a demagogia têm uma relação fundamental com a popularidade. O assistencialismo é a base material da popularidade e a demagogia adquire funcionalidade a partir da aprovação popular, que o populista busca manter manipulando as expectativas da massa, agora por meio das redes digitais. O terceiro elemento deste triângulo é a autocracia. Todo populismo é personalista. O chefe populista não compartilha poder com o povo, nem com o Congresso. É autoritário, personalista, centralizador e prepotente. São sempre falsos simpáticos, cujo sorriso aparentemente amistoso disfarça o desprezo e a intolerância com que trata os outros. Bolsonaro é nosso primeiro caso de populismo de extrema-direita no poder.
Começou sustentado apenas na manipulação da opinião pública, fazendo um jogo de máscaras, para aparecer na campanha digital como paladino da moral e dos costumes tradicionais, do combate à corrupção, à “velha política” e ao “comunismo”. Para conquistar o mercado financeiro — que o apoiou, inclusive financeiramente, na campanha e continua a apoiá-lo — cooptou um economista de fama ultraliberal para conduzir a economia. Para dar credibilidade à fantasia anticorrupção, convocou para o governo Sergio Moro, o juiz ícone da Operação Lava Jato que havia justiçado o ex-presidente Lula. Para firmar a aversão à “velha política”, recusou-se a fazer uma coalizão de governo e propôs-se a pressionar o Congresso com o apelo à parcela militante de sua base de apoio na sociedade.
Bolsonaro tem três tipos de base social, hoje. Sua base natural, composta pelo rés-do-chão das corporações militares e policiais, das quais foi representante fiel na Câmara dos Deputados por quase três décadas. O séquito de desatinados da extrema-direita, que tem participação majoritária de evangélicos. É o tipo de gente que tentou invadir o hospital de Recife onde estava internada a menina vítima de estupro para interromper uma gravidez imposta por um criminoso infame. Ele recruta neste grupo os militantes que saem às ruas para fazer as vezes de povo. A terceira base é recém-conquistada, formada pela massa despossuída, que ficou ainda mais desprotegida pela crise econômica resultante do péssimo manejo da pandemia pelos governos da União e dos estados e municípios. Ele a descobriu, ao ver o efeito do auxílio emergencial em sua popularidade. Auxílio que resistiu a aprovar e do qual se apropriou ao ver que o Congresso o aprovaria. Como não podia vetá-lo e arriscar-se a perder apoio até entre seus seguidores, principalmente os evangélicos pobres e desempregados, tomou-o para si e carimbou com seu rosto.
As máscaras funcionaram, mas por sua própria natureza, têm prazo curto de validade. Quando saiu a primeira notícia sobre o envolvimento da família na prática da rachadinha. Bolsonaro pôs de lado a máscara anticorrupção. Ao sentir a ameaça de impeachment ou processo criminal, queimou-a e à máscara antipolítica na mesma fogueira. Bolsonaro nunca foi a favor da luta anticorrupção, ou contra a política fisiológica. Rasgou a fantasia e deu os braços à sua banda mais fisiológica. Perdeu o timing para formar uma coalizão majoritária, mas conseguiu fazer uma aliança de conveniência que tem poder de veto no Congresso suficiente para barrar pedidos de impeachment ou de autorização para ser processado por crime comum.
A máscara liberal começou a derreter com o calor das pressões por mais gasto e a favor do relaxamento do teto de gastos. O espaço de Paulo Guedes no governo está encurtando. A chegada do centrão reforçou a facção dos gastadores no governo. A instrumentalização política da Caixa, que se tornou a ferramenta do assistencialismo e da propaganda assistencialista, pôs por terra não só a possibilidade de privatização, como de administração profissional, com técnicas de gestão privada. A politização bloqueia não só a privatização, como a gestão responsável.
O populismo contém armadilhas que não têm como desarmar sem perdas. Há sempre um trade-off. Para acomodar o centrão, Bolsonaro tem que incomodar os moralistas que o apoiaram na suposta pregação anticorrupção e antipolítica. Para manter o assistencialismo, tem que desalojar os liberais pró-austeridade e pró-mercado.
Ao se tornar refém do centrão para garantir imunidade, ele contrata uma dívida em aberto no mercado futuro. O fisiologismo é insaciável. Não se contenta com uma concessão apenas. Requer resgates adicionais, toda vez que tiver que votar a seu favor. As demandas aumentarão com a proximidade das eleições municipais. O assistencialismo, para ter efeito positivo na popularidade, deve manter o grau de satisfação dos beneficiários. A frustração transforma o apoio em rejeição em tempo real. Portanto, Bolsonaro terá que manter o valor do auxílio emergencial para a doação assistencialista. Se conceder uma renda inferior ao auxílio emergencial, frustra a massa, que passará a rejeitá-lo. Para pagar o resgate ao centrão e sustentar o valor dos benefícios com seu carimbo pessoal, Bolsonaro precisa de um orçamento sem limite. Se conseguir, contrata uma crise fiscal e o risco de insolvência da dívida pública. No limite haveria fuga de capitais e a recessão se transformaria em depressão.
Na minha interpretação do momento histórico-estrutural que o mundo vive hoje, populismos desta natureza têm fôlego curto. Não dispõem dos recursos para manter esse jogo de realização permanente das expectativas que suscita. Só tem dois caminhos, a derrocada ou a transição para um governo autoritário pleno, subjugando o Legislativo e o Judiciário e manipulando as regras do jogo eleitoral para eliminar a competição e transformá-lo em instrumento de perpetuação do poder. Como resultado, consolidaria a situação do Brasil como pária global.
Esta análise não significa que eu apóie as políticas de austeridade em voga no mundo nas décadas anteriores à pandemia. Nunca fui adepto da austeridade assentada na aversão radical ao gasto público, ao papel social e econômico do estado. Mas sempre fui realista e, por isso, reconheço os limites reais às escolhas políticas. Na atual configuração da economia capitalista globalizada e com hegemonia do capital financeiro, o equilíbrio fiscal é uma condição inarredável. Desobedecê-la sempre implicará em custos muito maiores e sempre mais dolorosos para os mais pobres. Sou a favor de se buscar o equilíbrio fiscal eliminando todo e qualquer subsídio permanente ao capital e aos mais ricos e mantendo uma rede de proteção social robusta. O estado sempre terá este papel de segurança social e de apoiar a cultura, a ciência e a inovação. Nada disto cabe no programa dos populistas. Neste programa, o estado é um instrumento de manipulação assistencialista e de repressão. Daí, também o movimento de Bolsonaro para instituir um aparelho de espionagem política — que chama de inteligência — e neutralizar os mecanismos de freios e contrapesos do estado democrático de direito.