O Brasil é surreal. Um país no qual a Suprema Corte precisa mandar investigar bandidos, obedecer a lei e determinar ao Executivo que implemente políticas públicas para remediar uma catástrofe humanitária, cuja principal culpa é do próprio Executivo, no governo anterior.
Um país no qual o presidente da República faz um decreto mandando forças armadas, polícia e agências públicas cumprirem suas responsabilidades constitucionais e legais. Pois é, mas teve que ser assim, porque o governo Bolsonaro disseminou desordem, ilegalidade, desmando, desregramento e inação em vários campos de obrigação do Executivo federal e do Estado. Bolsonaro e seus ministros descumpriram ordens judiciais. Cometeram crimes de responsabilidade e crimes comuns.
Vamos lembrar os momentos do desgoverno que nos lesaram gravemente: pandemia, invasões de terra, queimadas e desmatamento recorde em todos os biomas, especialmente na Amazônia. Ações e inações que puseram em risco de extermínio povos indígenas como os Yanomami, Waimiri-Atroari, Munduruku, Guarani-Kaiowá, Pataxó, Ye’kwana, Parakaná, Uru-Eu-Wau-Wau, Awa Guajá, Kamari, entre outros. Talvez todos em todas as regiões. No asfalto de Brasília a ocupação golpista da praça e destruição das sedes dos Três Poderes.
Tive a sorte de, na minha formação, ter convivido com grandes antropólogos brasileiros, como Roberto Cardoso de Oliveira, Roque Laraia, Roberto DaMatta, Júlio César Melatti, Gilberto Velho, e me convencer da visão da cultura como elemento mais complexo que nosso uso comum do termo, de definição diferenciada do ser humano, por seus modos, costumes, cosmologias, línguas, sentimentos.
Todos os povos indígenas estão sob ameaça e não só na Amazônia. Em 2021, o Cimi registrou a ocorrência de 305 casos de violência que atingiram pelo menos 226 Terras Indígenas (TIs) em 22 estados do país. No ano anterior, 263 casos de invasão haviam afetado 201 terras em 19 estados. A quantidade de casos em 2021, foi quase três vezes maior do que a registrada em 2018, quando foram contabilizados 109 casos. Os registros totalizaram 355 casos de violência contra pessoas indígenas em 2021, maior número registrado desde 2013, quando o método de contagem dos casos foi alterado. Em 2020, haviam sido catalogados 304 casos.
Como exemplo da extensão territorial do conflito em torno da terra e da vida indígena, menciono os avanços sobre a terra indígena Xokleng Laklãnõ, em Santa Catarina, onde vivem os Xokleng, e também Guarani e Kaingang. Os ataques armados a Pataxós na terra indígena Barra Velha do Monte Pascoal, na região de Porto Seguro.
O ecocídio do Rio Doce pela Vale e Billings Metal (Samarco), que matou o rio divino dos Krenak, o rio Doce, o Watu, em Minas Gerais, no incidente evitável de Mariana. Ainda em Minas Gerais, na região de Brumadinho, os Xukuru Kariri reclamam que a Vale impede seu acesso à terra que ocupam. Essas são apenas umas pinceladas da tela sombria do sofrimento desses humanos-indígenas sob ataque de fazendeiros, garimpeiros, grileiros, posseiros e desmatadores de toda espécie.
O antropólogo Roberto DaMatta nos ajudou a ter a dimensão exata do que significam esses ataques a indígenas, por toda parte do território brasileiro, ao explicar em sua coluna para o Globo “os que chamamos de “índios” são representantes de outras humanidades. São manifestações do humano”. E ao nos lembrar que, quando “falamos da atual tragédia Yanomami, estamos de fato nos referindo à agonia de liquidar um modo alternativo de ser humano”.
Os povos indígenas como manifestações plurais do humano, outras humanidades integrais, com cultura, emoções, sentimentos e línguas diferentes da nossa, enriquecem e robustecem a espécie humana. O extermínio dessas humanidades diversas empobrece e debilita toda a espécie humana. Os indígenas vivem a floresta, não apenas na floresta, vivem os rios, não apenas nos rios. Por isso, quando destruímos a floresta, ou matamos os rios, destruímos os que nela habitam, como disseram os Awá-Guajá à jornalista Míriam Leitão, em reportagem, com fotos de Sebastião Salgado, ou os Krenak, ao dizerem desolados que o Watu morreu. Não são forças de expressão são manifestações de sentimentos e perdas reais.
O presidente Lula autorizou por decreto o Comando da Aeronáutica a criar Zona de Identificação de Defesa Aérea (ZIDA) sobre o espaço aéreo do território Yanomami e seu entorno, contra todo os tipos de tráfego aéreo suspeito de ilícito, durante o período que durar Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional. Já escrevi aqui sobre a omissão da Força Aérea no controle do espaço aéreo, que permitiu uma frequência de voos na região da TI Yanomami digna de um grande hub metropolitano, com pousos e decolagens em campos de pouso regulares ou clandestinos. Estes últimos proliferaram neste período, chegando aos milhares. Controle ese que já foi feito de forma tão eficaz, que teve, no passado, o efeito de impedir o tráfico de drogas por meio de voos clandestinos e levou os traficantes a descerem para os rios.