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Um quê de Sertão e muita literatura

Uma cidade do sertão mineiro cujo centro histórico é muito bem preservado. Um belo casario colonial, a igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, que é uma pequena joia. Como é de conhecimento geral, os escravizados eram catequizados, porém proibidos de frequentar a igreja matriz, destinada aos senhores, seus familiares e agregados. Os pretos construíam a matriz e outra menos aparatada, que podiam frequentar. Paracatu recebeu entre 23 e 27 de agosto deste ano de 2023 o primeiro Festival Internacional e Nacional de Literatura, Fliparacatu. É um bom começo. Mas não é suficiente para produzir um grande evento, um encontro de almas, uma roda de amizade e cumplicidade.

Foram alguns meses de preparação, com três curadores, Afonso Borges, Tom Farias e eu, procurando montar uma programação com qualidade, diversidade, lançamentos de livros inéditos e relevância cultural politica e social. Valeu o esforço, o Fliparacatu teve diversidade, qualidade, muitos lançamentos de livros e relevância. Mas, não basta para fazer um evento marcante, difícil de repetir.

Uma população mobilizada, mostrando a alegria de receber os autores e ter um evento do porte do Fliparacatu, criando uma ambiência humana calorosa, participativa, reações espontâneas, intensas. É um elemento sem dúvida indispensável a um grande evento. O padre Hilton Rodrigues Santana, cedeu o espaço da igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e da Casa Paroquial, para as mesas do Fliparacatu. O desprendimento do padre Hilton, inclusive enfrentando a incompreensão de alguns paroquianos, permitiu que os jovens da cidade voltassem a frequentar aquele espaço, do qual andavam arredios. o padre Hilton mostrou a eles que pratica o ecumenismo e a solidariedade pregadas e praticadas pelo papa Francisco. 

Autores que se relacionam sem pompas e sem reivindicar tratamento de celebridades. Que interagem entre si em ambiente de pura camaradagem e com o público, sem estabelecer distâncias ou hierarquias. E celebridades havia muitas no festival. Menciono apenas duas delas, que foram os autores homenageados do Fliparacatu, Conceição Evaristo e Mia Couto.

Todos esses elementos juntos fazem um festival literário bem sucedido. Apresentações criativas, emocionantes, inspiradoras. Ótimo, temos um belo festival literário. Mas em que ele se distingue de outros igualmente bem sucedidos. Fizemos o Fliaraxá entre 5 e 9 de julho. Foi um sucesso. Teve diversidade, qualidade, lançamentos e relevância. Teve apresentações criativas e debates enriquecedores.

O que fez, então, este Fliparacatu especial, a ponto de todos os autores deixarem a cidade saudosos e querendo voltar no ano que vem? O que os levou a trocar mensagens de carinho depois de deixarem o sertão mineiro rumo a suas terras? O que levou as pessoas da cidade a procurarem os autores nas redes para continuar a acompanhá-los? 

Aí entra o imponderável. Como saber de antemão que aquela particular seleção de autores daria liga tão boa? E esse fluido mágico que emociona e agrega criando um clima diferente? Um calor dentro da onda de calor que persistiu pelos cinco dias do festival. E a alegria, simpatia e disposição de toda a equipe ao interagir com os autores, resolver problemas, cuidar dos detalhes para que tudo desse certo? Tudo isso sem deixar o sorriso, o abraço, a gentileza. Algo passou por Paracatu nesses dias. Sertanejo sabe quando isso acontece, quando há algo no ar que se percebe, mas não se entende.

Já se viu de tudo nessas paragens de veredas abusadas, veredas preservadas. Este sertão cerrado, grande sertão tem suas manhas e suas magias. Eu, nascido no Curvelo, que já andei pelos ermos que unem de Cordisburgo a Paracatu percebo um pouco e desconfio de muita coisa. Pode-se passar por Varjão de Minas, Veredas e Buriti. Ou pode-se ir por Corinto, Andrequicé, Três Marias e por aí se chega. Ou se pode, saindo de Curvelo, alcançar Corinto, subir por Contria e Muquém, Boqueirão, Sumidouro, Várzea da Palma, Pirapora, Formoso, Imbuçu, Veredas e já se achou o caminho mesmo que vai a Buriti para chegar em Paracatu. Tudo é sertão. O buriti faz caminho. A gente pode até esbarrar com os riobaldos e os manuelzões nesses trajetos.

Então, por esse sertão andam muitas coisas. Umas más, outras boas. Insondáveis. Vez por outra um desses mistérios sertanejos dá de vaguear por algum canto especial e transforma tudo que é bom, em melhor. Pois foi um desses que passou por Paracatu, durante o Fliparacatu. Vai ter outro igual? Quem haverá de saber? é preciso se embrenhar e esperar para ver.

Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos Paracatu