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Adiós, Saura

Sempre gostei mais de Saura do que de Almodóvar. É um cinema que tem mais a ver com meus sentimentos estéticos do que a espetacularidade dos filmes de Almodóvar. Uma outra afinidade tem a ver com suas brilhantes alegorias sobre o período da ditadura franquista na Espanha — El jardin de las delicias, Ana y los lobos, La prima Angélica e Cria cuervos, todos da década de 1970.

Eu fazia o doutorado nos Estados Unidos, e por circunstâncias outras me envolvi em uma pesquisa sobre a sociologia política do capitalismo. A mim coube pesquisar as origens do capitalismo na Espanha e as raízes do franquismo. Dediquei um ano e meio a este trabalho e transformei o resultado nos “papers” centrais da minha área de especialização principal de sociologia política comparada.

Inquietava-me a perspectiva de termos no Brasil uma ditadura tão longeva quanto a de Franco, seguida por um novo autocrata como foi Carrero Blanco. O mergulho no drama secular da história espanhola e as dores da ditadura em meu próprio país me aproximaram mais de Saura do que dos outros cineastas que visitavam essa temática.

Nos início da juventude, estudei cinema em um curso intensivo, de extensão, na Universidade de Brasília, organizado por Paulo Emílio Salles Gomes e Jean-Claude Bernardet. Aprendi a prestar atenção a todos os componentes dos filmes de autor, a estrutura do roteiro, os diálogos, a direção de atores, a fotografia, os enquadramentos, a montagem, o ritmo. Isso me permitia tirar de cada um toda a riqueza de expressões. Saura fazia filmes que me satisfaziam em todos esses momentos da concepção artística do cinema.

De sua produção pós-franquista, tenho boas recordações de Elisa, vida mia, Los ojos vendados e Mama cumple cien años. Gosto muito também de Dulces horas, muito desprezado pela crítica, El Dorado e La noche oscura. Em especial Los ojos vendados me tocou por tratar de temas mais gerais do universo doloroso das ditaduras, a tortura e a violação de direitos humanos. O filme rompe com o pacto de silêncio do início da democratização espanhola, que propunha esquecer o passado para construir a democracia.

A venda nos olhos é a expressão metafórica deste pacto. Além disso, o próprio Saura ao falar de seu filme explicou, a Espanha acabara de aprovar uma lei contra a tortura, “mas a tortura é mundial e Los ojos vendados representam o que eu penso dela, o que imagino”.

Los ojos vendados e o excelente Tango são os dois filmes em que Saura lança o olhar para além de Espanha, ao trazer para o contexto espanhol temas argentinos. Ambos excelentes. A narrativa de Tango é surpreendente. É o seu típico jogo de espelhos entre o espaço cênico e a “realidade” tal como vista pela câmera. Nele, o tema do pacto do silêncio aparece na indagação de um personagem que faz o financiador e produtor do musical, que quer impedir a relembrança do passado. Em um dos diálogos, ele diz “não vamos reviver algo que já está esquecido… Para que criar angústia?”.

Los ojos vendados é um filme sobre a intimidação em uma sociedade violenta. As duas películas refletem o horror humano à desumanidade de pessoas corrompidas pela violência. Ele se desdobra numa montagem teatral, contraposta à vida dos atores fora do palco, num movimento duplo para realizar a cena crucial.

Na minha visão, é nesta obra que Saura amadurece sua proposta estética que funde o espaço teatral à mobilidade específica do cinema. Essa duplicidade entre o teatro, lugar da “encenação”, e o cinema, lugar da “documentação”, promove no espectador uma cisão entre arte e vida como a dizer “cuidado, isto que está na tela pode se passar com você”, ou “qual a diferença, mesmo, entre ficção e realidade?”. No filme, o teatro protagoniza a tortura, o cinema documenta a violência doméstica.

Saura faz o contraponto entre teatro e cinema, no qual a parte cinematográfica é tratada como se documentasse a vida cotidiana, fora do palco, daquelas pessoas, na verdade personagens que estão a encarnar personagens. Contrói, deste modo, uma ilusão poderosa com personagens dentro de personagens.

Saura é brilhante nesta construção de uma obra dentro de outra obra. É esta mesma poética dos espaços e da duplicidade persona teatral/personagem cinematográfica que levará para sua maravilhosa trilogia flamenca, Bodas de sangre, Carmen e El amor brujo. Esse duplo olhar torna difusas, etéreas as fronteiras entre ficção e realidade. A câmera tem um papel fundamental nesta construção dos espaços, das personagens, e é o olhar da câmera que transforma o resultado em puro cinema.

Meu reencontro com Saura, por meio dos filmes musicais de balé flamenco, aconteceu no Rio de Janeiro. Fui assistir a Bodas de Sangre, baseada na peça do poeta Federico García Lorca, no cine Paissandu, no Flamengo. O cinema estava vazio de dar pena. Quatro ou cinco pessoas apenas, além de mim. Os espectadores foram saindo e, ao final, ficamos apenas eu e uma outra pessoa. Ao final, ele ficou de pé e aplaudiu. Era Caetano Veloso. Não lembro se foi em 1981, quando o filme foi lançado, ou em 1982. Caetano já era celebrado como um dos maiores artistas brasileiros. Sempre foi apaixonado pelo cinema. Lembro que ele já havia lançado o magnífico álbum Outras palavras. Já o admirava, mas ao vê-lo aplaudindo Saura de pé e só no cinema vazio, essa admiração cristalizou.

A associação entre Saura e Antonio Gades produziu as mais brilhantes reconstruções de balé do cinema. Em grande parte por causa da estética do espaço cênico e teatral que distingue seu cinema de todos os outros. A dança passa a ter o papel de narrador, enquanto a câmera mostra o que se passa no plano teatral e documenta o que se passa fora dele. “A coreografia no cinema deve estar a serviço da câmera,” disse ele em uma entrevista sobre Bodas de Sangre.

Carlos Saura admirava Buñuel que admirava Carlos Saura. Isso para mim diz tudo. Adiós Carlos.