O que destruiu o Museu Nacional não foram as chamas, nem a impotência dos bombeiros e seus hidrantes sem água. Eles se espalham por todo o país. Também não é culpa desse governo agônico e faltoso. Esse incêndio começou há muitas décadas. É construção coletiva. Fomos nós todos os incendiários. Criamos a catástrofe do mesmo modo que temos construído nossa cultura política: com conformismo, comodismo e inação. O Brasil nunca deu importância real à educação, à ciência e à cultura. São parte dos nossos consensos ocos. Perguntados todos consideramos educação, ciência e cultura prioridades absolutas. Mas nossa tolerância com a degradação progressiva e acelerada das instituições educacionais, culturais e científicas afirmam o inverso. A vacuidade de nossos consensos produz o seu avesso.
Há muito a sociedade brasileira fica indignada no privado e é inerte no coletivo. Reclamamos da baixa qualidade das políticas públicas, do desmando, do desperdício, da corrupção, da violência. Mas, na prática e no coletivo, temos tolerado graus sempre mais baixos de qualidade em todas as dimensões da vida social. Aceitamos uma democracia sem qualidades. Admitimos nossos monumentos, prédios públicos, universidades, escolas, hospitais irem se degradando, sem manutenção, entregues ao desleixo. Nos conformamos com os resultados cada vez mais decepcionantes nos setores mais fundamentais para nosso processo civilizatório e nossa qualidade de vida. As matas queimam, os rios morrem, as cidades deterioram, os jovens desaprendem e tocamos a vida reclamando e esperando que alguém, com vontade política faça algo. Todavia, só existe uma vontade política, e ela é coletiva, é a vontade ativa da sociedade. Murros na mesa quebram a mesa ou a mão de quem os dá.
As chamas destruíram uma parte significativa de nossa memória histórica, antropológica, biológica, arqueológica, paleontológica, abrigada precariamente no Museu Nacional. Perdemos conhecimento. Perdemos uma parte relevante da noção de nós mesmos. Li em José Eduardo Agualusa a ideia da distância entre ser uma noção de país e ser uma nação. Para sermos nação, precisamos ter uma noção clara de quem somos e ir além dela, para construirmo-nos como Nação. Perdemos parte crucial dessa noção, sem sequer a termos conhecido bem e a realizado como memória coletiva. Ficamos um projeto de nação fragmentário e difuso.
Perdemos uma parte de nosso legado civilizatório, porque escolhemos perder. Não foram um presidente indiferente e ilegítimo, ou um ministro da Educação desconhecido e inepto que acenderam aquele fogo. O fogo no Museu Nacional, vem da queima histórica de nossa educação e cultura. Nossos legados se perdem porque são desprezados por nós. Despreciamos nossa história, nossos fundadores, porque brigamos com o que fomos. Desmemoriados, queremos sempre um passado que não tivemos e um futuro que não nos dispomos a construir. Se não sabemos olhar o valor do nosso passado, criticamente, mas com respeito, jamais seremos capazes de construir nosso futuro de forma consciente e deliberada. Iremos rumo ao futuro tropeçando nas conjunturas, sem bagagem e sem propósito. Erros gerais. Nesse campo, não há virtude à esquerda ou à direita.
O combustível que espalhou esse fogo cruel e vertiginoso saiu de nossos consensos ocos.