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Outro olhar

  • Categoria do post:Cultura

Quando um autor faz o leitor mudar sua visão sobre um tema contemporâneo, portanto móvel e inevitavelmente controvertido, ele realiza a literatura como via de transformação pessoal ou coletiva. Faz isso, sem intencionalidade, porque tem olhos de ver o mundo e sabe contar o que viu de fundamental. A literatura intencional perde-se na no próprio intento. Aconteceu comigo de mudar uma interpretação que vinha usando meio descuidado, até ler o alerta de que eu estava errado. Aconteceu mais de uma vez. Aconteceu ontem (23), quando li “São Jorge e os Dragões”, a crônica de sábado de José Eduardo Agualusa. Logo me veio à lembrança, outro desses momentos que reforçam em mim não só o gosto da leitura, mas a absoluta fidelidade à literatura, quando li o ensaio de Milan Kundera sobre romancistas europeus e o modernismo, na The New Yorker, em 2007. A frase de Agualusa que me capturou imediatamente o espírito, uma verdade tingida de fina ironia, era “os africanos seguem com muita atenção todos os conflitos tribais na Europa”. Era o enunciado em bom estilo de uma tese, dessas que viram seu pensamento de ponta cabeça. “Os jornalistas e analistas europeus procuram em todos os conflitos africanos uma raiz étnica, insistindo em que as fronteiras africanas são recentes e artificiais. Contudo, as fronteiras africanas foram estabelecidas durante a Conferência de Berlim, de novembro de 1884 a fevereiro de 1885, e desde então, salvo uma ou outra exceção, têm permanecido notavelmente estáveis. Ao contrário, as fronteiras europeias, tão artificiais quanto as africanas, conheceram inúmeras alterações nos últimos cem anos, muitas delas violentas, com países desaparecendo e outros emergindo.”

Eu mesmo já escrevi sobre as fronteiras africanas arbitrariamente desenhadas pelos colonizadores. Agualusa me fez repensar e reconhecer que, mesmo muitos de nós latino-americanos, olhamos a África antropologicamente e a Europa, sociologicamente. Ao falar de África, pensamos em sociedades tribais e etnias. Fixamo-nos em nossa ancestralidade, não na contemporaneidade deles. Ao falar de Europa, pensamos em geopolítica e classes sociais. Olhamos a Europa como um centro atual e avançado. O etnocentrismo é como o machismo ou o racismo, nos pega desprevenidos.

O outro ensaio que teve esse efeito em mim e do qual me lembrei lendo Agualusa, trata do espanto do europeu que não é reconhecido na própria Europa. Kundera fala, quase em lamento, que, nos anos 1960, quando deixou a então Tchecoslováquia para refugiar-se em Paris, descobriu perplexo que era um exilado do Leste Europeu. Ele era apenas cidadão de um país que havia tido sua nacionalidade usurpada e fora anexado a um outro mundo, arbitrário. Sua república era um pequeno distante país pouco conhecido, mal situado na geografia precária de gente que presta mais atenção na política, do que nas pessoas e em suas terras. Curioso que Kundera recebeu seu passaporte francês de François Mitterrand, junto com Julio Cortázar, que também se espantava com a confusão entre a nacionalidade e o sentimento de pertencer. Um sentimento que cresce com as migrações globalizadas e com a nascente miscigenação global, que redesenhará as fisionomias culturais de tantas sociedades. É tão fácil esquecer a história que nos formou. Milan Kundera vinha da Europa Central, de uma Praga que já havia sido exuberante, adorada por Mozart, que a escolheu para lançar sua extraordinária ópera Don Giovani, onde Einstein e Kafka trocavam ideias e música, em saraus que marcariam suas trajetórias e o nosso patrimônio cultural, a capital hussita, precursora da Reforma. Um pequeno país, com uma enorme cultura e aberto aos outros.

Agualusa contava de sua visita à Catalunha muito dividida pelo conflito sobre a autonomia. Ouviu reclamações similares às que já ouvira no Brasil, sobre a intolerância, as amizades quebradas por conjunturas apaixonadas, famílias divididas por motivações das quais se esquecerão na brevidade do futuro presente. Ou que escondem motivações mais profundas que mereceriam ser entregues à interação psicanalítica. Ventos tumultuosos passageiros que abalam sentimentos que se deseja mais permanentes. Com seus olhos de ver o mundo com estético humanismo, Agualusa, pôde perceber que a Catalunha era uma realidade que se renovara, a ponto de ser tão legítimo um catalão defender a independência, quanto outro se opor a ela, desde que ambos recusassem a violência.

Vivemos tempos fluidos demais, mutantes, nos quais a história se acelera exponencialmente. Parte dessa intolerância enraivecida vem da insegurança de perder sem saber o que virá, de ver o mundo que nos dá certa segurança desmoronar, sem que já possamos ver os novos mundos com clareza. Eles estão a nascer. O velho mundo morre mais rapidamente que amadurece o novo mundo. Os espíritos mais eriçados são tomados por emoções ressentidas e se fecham ao outro, quando a única saída é abrir-se ao outro, ao novo. E para nos abrirmos é preciso vê-los como de fato são e não com nossos preconceitos. É esse, talvez o elo mais significativo entre os ensaios de Agualusa, Kundera e Cortázar.

Ia escrever, hoje, sobre o histórico encontro entre as Coreias. Agualusa me demoveu desse propósito equivocado. Não sei o que dizer sobre esses dois países distantes. Um, produtor de carros que enchem as ruas das cidades brasileiras. O outro, para mim, uma espécie de remota referência arqueológica da Guerra Fria. E certamente nenhum dos dois é isso que vejo. Não sei quanto eles se distanciaram nesse desencontro hostil de 70 anos, nem quanto preservaram de sua original nacionalidade, partida por um contraditório amálgama de imposição externa e movimentos internos. Nesses tempos de história vertiginosa, 70 anos podem ser 140, 210 ou qualquer outra centena de anos. O próprio dinasta Kim Jon Un brincou com o presidente Moon Jae-in sobre as diferenças entre os hábitos de sua austera e fechada sociedade e os da afluente vizinha globalizada, a distante irmã. Se forem demasiadas as diferenças culturais… o que sei eu? Até hoje a integração entre as duas Alemanhas tem arestas que arranham as relações.

Artigo publicado originalmente no blog do Matheus Leitão https://g1.globo.com/politica/blog/matheus-leitao/post/2018/04/29/outro-olhar.ghtml