É difícil definir Maria da Conceição Tavares, economista ela era. Mas ia muito além. Intelectual, também era. Mas seu rigor analítico transbordava as fronteiras do que se entende por intelectual. Militante, sim, sem deixar de ser uma pensadora, esgrimindo sempre com maestria, a paixão militante e a veemência na análise. Mulher, brilhante, fundamental, apaixonada. Era dedicada e ardente professora. Gostava de festa, mas levava tudo muito a sério.
Convivemos por um tempo breve e intenso, de muita discussão criadora, de muitos sonhos bons para o Brasil, de debates e pesquisa e várias frustrações. Nesta época, Conceição trabalhava em sua tese de livre-docência na UFRJ, sobre acumulação de capital e industrialização no Brasil e eu, em um projeto coordenado por Luciano Martins, sobre estado capitalista e burocracia no Brasil durante a ditadura militar, do qual retirei minha tese de doutorado sobre política industrial e autoritarismo. Era um grupo de pesquisa na Finep a qual parecia, então, um asilo para cientistas sociais de esquerda na burocracia da ditadura. Essa unidade de pesquisa dentro da Finep, mas com poucas ligações com sua atividade central de financiadora de ciência e tecnologia, era dirigida por Marcelo de Paiva Abreu e, quando este foi para a diretoria, por Mário Machado. Estavam no grupo Carlos Lessa e Antônio Barros de Castro, também trabalhando em suas teses de livre-docência, Sulamis Dain, Patrícia Suzzi e Maria das Graças Salgado, além de Mário Machado, até onde alcança minha memória. Para mim, era ainda um momento de formação acadêmica. Eu tinha 25 anos recém-saído da rotina de cursos da pós-graduação, era professor visitante da FEA-UFRJ, onde dava um curso para a graduação sobre economia e política.
Tínhamos extensas e animadas discussões, sempre acaloradas, debatíamos divergências, trocávamos ideias. Aprendi muito naquele tempo, especialmente com Conceição que sempre teve extraordinária capacidade para analisar a dinâmica das estruturas econômicas do capitalismo e da economia industrial. Essas discussões e poder acompanhar os resultados da pesquisa de Conceição sobre a estrutura industrial brasileira e seu padrão de acumulação me permitiram desenvolver os fundamentos econômicos de minha tese, The Divided Leviathan: State and Economic Policy Formation in Authoritarian Brazil. Conceição fez, generosamente, a leitura crítica do rascunho da tese, e me ajudou a torná-la mais precisa. Mesmo depois desse período, costumávamos nos encontrar socialmente, sempre com muito proveito para mim, até o final dos anos de 1980, quando mudei a rota de minha carreira profissional.
A vida nos afastou, mas continuei a acompanhar e admirar Conceição à distância. Sua partida me entristeceu muito, embora celebre o tempo que passou entre nós, a muita gente que formou sem impor seu pensamento e sua inestimável contribuição a todos que querem pensar com independência e de maneira crítica. Conceição deixa várias coortes de ex-alunos, das mais diversas persuasões, espalhados por todo o espectro de atividade. Eu definiria seu pensamento assim: independente, crítico, talvez mais inconformista do que heterodoxo, ousado, rebelde. Defendia suas ideias agressivamente. Também pudera, teve que se impor como pensadora, economista, mulher, em um meio então inteiramente de homens, onde a única mulher citada era Joan Robinson, de inspiração keynesiana, como ela.
Conceição era veemente por ter convicções firmes e sempre fundamentadas. Sua visão econômica não era dogmática, tinha influências de Marx, Keynes, Kalecki, Aníbal Pinto e Celso Furtado. Sua obsessão com o combate à desigualdade e a pobreza começou desde seus primeiros momentos no Brasil, em meados dos anos de 1950, quando calculou, pela primeira vez, a curva de distribuição de renda no país. Não abria mão de defender uma economia socialmente orientada e uma democracia socialmente justa. Compartilho desse ideal que não permite dissociar a economia e a democracia do social. Nossas conversas sobre o capitalismo financeiro internacionalizado me ajudaram a tratar da hegemonia do capital financeiro globalizado, como parte das transformações que venho analisando em meus ensaios mais recentes.
A influência de pessoas como Conceição, com a vocação de professores, que formam mesmo quando apenas conversam, é perene. Espalha-se, de maneiras diferentes, por meio das gerações que formou. Como estão sempre associando a criação conceitual e a análise concreta, permitem a atualização do procedimento analítico com as mudanças trazidas pelo tempo. Tive a ventura de conviver com alguns poucos dotados desta virtude que Conceição exercia tão apaixonadamente. Era a última dos viventes que foram minha referência no amadurecimento intelectual.