A tragédia no Rio Grande do Sul nos assombra e entristece pela rapidez, violência e duração das enchentes que destruíram cidades em todo o estado. As principais vítimas são as populações mais pobres, como as da zona norte de Porto Alegre. A chuva ainda voltará a castigar os gaúchos, porque há nova frente fria em sequência ao ciclone extratropical que se formou no Sul do país. O efeito da mudança climática que assola o Rio Grande do Sul é duplo. As frentes frias estacionam sobre o estado, impedidas de avançar pela massa de ar quente da onda de calor que está no Sudeste. Mas, 2023-2024 estão marcados por um aumento significativo dos desastres climáticos.
Temo que, tão logo a tragédia deixe o noticiário, nos esqueçamos dela e continuemos nossa insensata marcha rumo ao colapso climático. Veremos na convenção do clima (COP), no final deste ano, e em Belém, no final de 2025, os países manifestarem preocupação com o aumento das emissões. Os cientistas dirão que estamos perto de ultrapassar definitivamente o limite estabelecido no Acordo de Paris, de aquecimento médio global máximo de 1,5C. Já atingimos esta marca, em 2023. Ao final das duas reuniões, os países decidirão, uma vez mais, pelo mínimo denominador comum.
Os cientistas e os cidadãos bem-informados dirão que não é suficiente. O IPCC atualizará seus cenários, que mostrarão a necessidade de redução de volume ainda mais expressivo das emissões de gases estufa — que continuam a subir — em tempo ainda mais curto. O cenário vigente indicava que precisaríamos reduzir as emissões em 43%, até 2030, para ficarmos na meta de 1,5C. No final de 2025, já saberemos que sequer começamos a reduzir as emissões globalmente. Portanto teríamos que fazer esforço maior entre 2026 e 2030 para manter este objetivo.
As tragédias socioclimáticas mataram em torno de 24 mil pessoas em todo o mundo no ano de 2023. E continuam a matar, no primeiro semestre de 2024. São socioclimáticas por suas razões principais. A primeira é que resultam da mudança climática provocada pelo aquecimento global que é produto da sociedade humana. A segunda é que tempestades, furacões, tornados e secas atingem o ambiente construído pelos humanos e, neles, principalmente, os mais pobres. Os mais ricos também são atingidos, porém em menor escala e são dotados de maior capacidade de recuperação e adaptação.
Em 2023, houve 240 eventos climáticos registrados no EM-DAT, o banco de dados de riscos de desastres mundiais. Comparados aos eventos de 2022, houve um aumento de 60% no número de mortes em deslizamentos de encostas; aumento de 278% nas mortes em queimadas; crescimento de 340% nas mortes causadas por tempestades. O principal desastre foi a enchente devastadora na Líbia, causada pela tempestade tropical Daniel. Mais da metade das mortes ocorreram em países de renda baixa ou média, que também são os menos responsáveis pelas emissões. Mas, é falsa a ideia de sucessivos governos brasileiros de que o Brasil é um país que contribui pouco para as emissões. O Brasil é um grande emissor, por causa do desmatamento em suas matas e florestas na Amazônia, no Cerrado e na Mata Atlântica, pelas queimadas e pelo uso excessivo de gasolina e óleo diesel nos transportes, de diesel e carvão nas indústrias e diesel e gás nas termelétricas.
A mudança climática pode ter ultrapassado um novo limite em 2023. O ano de 2024 pode ser o primeiro ano no “novo normal”. Para mim, a noção de que as anomalias, em 2023, seriam um novo marco veio com o espanto unânime da rede de climatologistas de todo o mundo que sigo no X(Twitter) ao constatarem o fato inédito de todos os oceanos do planeta apresentarem temperatura acima da média ao mesmo tempo. O aquecimento simultâneo dos oceanos, além de não ter precedentes, interfere com as correntes marinhas que fazem circular o calor entre os continentes.
O derretimento das geleiras — especialmente da calota de gelo da Groenlândia que nos afeta diretamente — diminui a salinidade do oceano e, em consequência, reduz a densidade da água. A água dos oceanos fica mais quente e mais leve. Ao não afundarem deixam de alimentar as correntes marinhas nas profundezas, que ficam mais fracas. Esta mudança afeta duramente a Circulação Meridional Norte (AMOC) que é o principal sistema circulatório do Atlântico. Ela transporta água quente e salgada dos trópicos para o norte da Europa e água mais fria para o sul. Isto ocorre nas profundezas do oceano. O enfraquecimento da AMOC, especialmente ao longo da Corrente do Golfo, eleva o nível do mar no Atlântico Norte. No limite, provocará ondas de frio intenso na Europa.
O aquecimento dos oceanos aumenta o volume de evaporação da água mais leve de superfície formando nuvens de chuva. Este aquecimento contribuiu para aumentar as tempestades em todo o mundo. Já mencionei a Líbia. Moçambique, Madagascar e Malawi, sofreram duramente com o ciclone Freddy. Morreram 1400 pessoas e 1600 escolas foram destruídas. No Paquistão, 200 pessoas morreram, a maioria crianças, com as enchentes provocadas por chuvas torrenciais na estação das monções. Países mais ricos não ficaram imunes. O aquecimento provocou violentas ondas de calor na Europa, em 2023, matando perto de 61.600 pessoas. As perdas econômicas com os desastres socioclimáticos alcançaram US$ 150 bilhões. A região mais duramente atingida foi a Ásia. Mas os desastres não pouparam as Américas, que registraram 98 eventos, no Brasil foram 16; a África, com 60 eventos, alguns deles entre os mais extremos, como os que atingiram Moçambique e Líbia; a Europa, com 61 eventos, os piores foram as queimadas e as ondas de calor.
Mas não só de chuva, calor, fogo e frio, morreram pessoas em 2023. As secas longas, que atingiram, por exemplo, a bacia do rio Negro/Amazonas afetaram a vida de quase 22 mil pessoas no mundo, em 2023.
O derretimento de geleiras na Antártica tem influenciado na formação das frentes frias mais intensas que chegam ao Brasil. Elas se formam no interior mais gelado da Antártica e não encontram mais as barreiras opostas por geleiras próximas ao oceano, que derreteram, e chegam ao sul Brasil. A barreira de calor no Sudeste, neste semestre, mantém a frente fria estacionada sobre o estado. É como se o Rio Grande do Sul sofresse inclemente bombardeio climático, matando pessoas, demolindo prédios, destruindo pontes e estradas, interrompendo o suprimento de água e eletricidade. Porto Alegre se julgava protegida pelo sistema de diques construído nos anos 1970. Mas, a falta de manutenção nas partes móveis, como comportas, e nas bombas, levaram ao colapso dos diques.
O alerta está dado. Em breve saberemos se 2024 será o novo normal. Teremos que correr para evitar o colapso climático. Enquanto isto, novos desastres ocorrerão. Já passou da hora de começarmos a investir na adaptação de nossas cidades ao novo normal e cuidar dos perto de 12 milhões de brasileiros hoje em áreas de risco e alto risco.