O samba sempre lembrou a literatura na Sapucaí. Em 2024, fez da literatura a própria festa. Os desfiles de domingo e segunda-feira do Grupo Especial, no seu conjunto, com uma exceção notável, foi uma espécie de celebração da volta da luz, da liberdade e da inteligência, após os anos malditos de 2019-2022. Anos malditos é a expressão sugerida por Afonso Borges, adotada pelo colunista Jamil Chade e por mim, para este momento em que o Brasil desandou. O samba celebrou a liberdade, a negritude, “teu povo é livre”, e “liberdade se rebela, nasci quilombo e cresci favela”, nos versos da Portela; os povos originários “Ya temi xoá (não morremos)”, “napê, nossa luta é sobreviver, napê, não vamos nos render”, cantou a Salgueiro.
A literatura brasileira tem um conjunto relevante do que chamo de romances fundacionais, que lançam luz sobre as fundações do Brasil, sobre os momentos constituintes de quem somos, de bem e de mal. Pelo menos três desfiles da Sapucaí de 2024 eu chamaria de enredos fundacionais: “Um defeito de cor”, da Portela, “Hutukara”, da Salgueiro, e “Nosso destino é ser onça”, da Acadêmicos do Grande Rio.
A Paraíso do Tuiuti, embora não tenha desfilado um tema de origem, cantou João Cândido, o ‘Almirante Negro’, com visual inspirado em HQs, que relembra a Revolta da Chibata e seu líder negro, um momento político importante da luta por outro Brasil na Primeira República.
O centro das atenções na segunda-feira esteve na Portela, que levou para a avenida o livro da Ana Maria Gonçalves, empolgada como destaque no Abre-Alas da escola. Um defeito de cor é um dos grandes romances da literatura contemporânea, o mais importante deles. Uma obra sobre nossas fundações profundas. Ficção em torno da mítica Kehinde, a Luiza Mahin, mãe de Luiz Gama, um dos gigantes da luta pela construção de um Brasil para todos. Não é uma biografia romanceada. É uma ficção em torno da história dos povos sequestrados de África para serem escravizados no Brasil.
O enredo desfila os vários momentos desta saga afrobrasileira, marcada por muita violência e pelo genocídio de povos livres e nobres escravizados, famílias separadas à força, humilhação e revolta. Celebrando Ana Maria Gonçalves, desfilaram autores importantes da nossa literatura escrita por negros. Estava lá a grande dama, a escritora e poeta Conceição Evaristo, ao lado do autor (não é erro de grafia) Lázaro Ramos. Personificando Luiz Gama, estava Sílvio Almeida, que escreveu vários livros, entre eles Racismo estrutural, obra fundamental para entender a persistência do racismo em nossa sociedade.
No domingo, a estrela dessa fusão mágica entre samba e literatura foi a Salgueiro, que celebrou o povo Yanomami, com o enredo Hutukara, o céu de Omama, o “céu que desabou nos primeiros tempos, constituindo o plano em que nos encontramos hoje”, inspirado no ícone da literatura indígena A queda do céu, de Davi Kopenawa e Bruce Albert. Foi um desfile fortíssimo, que lembrou a tragédia dos Yanomâmi, o genocídio, mas teve como foco mostrar o grande povo Yanomâmi, seus mitos fundacionais, sua beleza e sua cultura. Um pedido do próprio xamã Davi Kopenawa, que orientou o cuidadoso e preciso enredo.
No refrão, o samba lembra, Ya temi xoa, aê, êa!, “ainda estou vivo”. Escritor, membro da Academia Brasileira de Letras, o filósofo indígena, Ailton Krenak também estava nessa avenida Yanomâmi, que lembrou a cultura e a luta de outros povos indígenas.
A Acadêmicos do Grande Rio, com “Nosso destino é ser onça”, adotou os mitos Tupinambás, um dos nossos povos fundadores, examinados por Alberto Mussa em seu livro Meu destino é ser onça. É o relato da cosmogonia universal, dos mitos fundadores da humanidade na visão Tupinambá, da criação do mundo pelo velho onça. Werá werá aue naurú wera aue, o guerreiro e guardião com asas, cantou a Grande Rio na Sapucai. No refrão, diz, “no meu destino a eternidade, traz no manto a liberdade, enquanto a onça não comer a lua”. Uma das alas “Meu tio o Iauaretê”, fala dos homens-onça. Lembra o conto homônimo de Guimarães Rosa.
Além desses desfiles fundacionais, três deles inspirados em livros relevantes da literatura nacional, a Mocidade Independente de Padre Miguel, desfilou o enredo “Pede caju que dou… pé de caju que dá!”, sobre um mito indígena objeto do livro da importante escritora Socorro Acioli. Um samba fácil virou hit do carnaval.
A Porto da Pedra mostrou o enredo “Lunário Perpétuo: A profética do saber popular”, inspirado no livro Lunário Perpétuo do Valenciano, Jerônimo Cortés. A Imperatriz Leopoldinense, levou para a Sapucaí o enredo “Com a sorte virada pra lua segundo o testamento da cigana Esmeralda”, inspirado no folheto O testamento da cigana Esmeralda, do poeta paraibano Leandro Gomes de Barros.
Foi o carnaval da literatura, da alegria de ver o Brasil livre de um governo indecente que fez mal ao país e à cultura. Foram tantas as metáforas da saída da escuridão para a luz que só não viu quem não quis. Como cantou a Imperatriz, “Vai clarear, olha o povo cantando na rua”.