Os governos com mentalidade autoritária têm mostrado comportamentos comparáveis. Uma das características comuns é a construção de ameaças e inimigos imaginários para justificar medidas restritivas e recuos reacionários. O escritor José Eduardo Agualusa lembrou, em sua crônica de sábado (12) no Globo, os grilos de Havana, cuja estridulação atormentou os ouvidos delicados de funcionários da embaixada americana em Cuba. Foram usados para justificar a chamada dos diplomatas para casa e uma investigação sobre a ameaçadora arma acústica cubana. Não passavam de grilos estridentes.
Em Minas, gostamos de contar estórias de fantasmas. Não conseguimos conter essa compulsão pelos contos de terror quando estamos em uma antiga casa de fazenda ou num daqueles grandes hotéis com o discreto charme da decadência meio interrompida por novos usos. Como o Tauá Grande Hotel, em Araxá. Lá fazemos um importante festival literário, o Fliaraxá, com curadoria de Afonso Borges e, à noite, nas rodas de conversa de escritores, algum de nós menciona o filme de Kubrick, O Iluminado, passado em um cenário muito parecido. Luiz Ruffato sempre tem boas histórias de assombrações, todas mineiras, para contar.
Mas, porque falo das narrativas mineiras de terror? Porque elas são espertamente ajustadas para atingir as pessoas mais impressionáveis da audiência. Elas têm alvo. Se impressionamos muito algumas pessoas-alvo no grupo, conseguimos algum efeito de contágio nas outras e a estória de terror consegue realizar melhor seu objetivo de assombrar a audiência.
Isso na linguagem técnica de sociólogos e politólogos chama-se “enquadramento” (framing). É o que os governantes conservadores e reacionários têm feito para justificar mais repressão, fechamento de fronteiras aos imigrantes e outras políticas repressivas. Não uso o termo reacionário como ofensa. Reacionários são aqueles que afinam suas políticas para levar o país de volta a um passado idealizado, por certo inexistente e, sem dúvida, irrealizável. Não se restaura o passado, menos ainda aquele que jamais existiu. O sociológico Zygmunt Bauman recorreu a uma palavra quase impronunciável para nos alertar sobre esse sonho de um passado imaginário, retrotopia. É o que está implícito no slogan que Donald Trump tomou emprestado a Ronald Reagan “make America great again“. Mira uma época passada de grandeza dos Estados Unidos que não tem referencial histórico concreto. Como lembra o politólogo Mark Lilla, os reacionários sempre buscam esse sonho de passado em contraponto ao pesadelo da catástrofe produzida por governantes que os precederam. Vivemos a mesma coisa hoje no Brasil.
Essa revolta contra o mundo em que estamos é uma reação à mudança vertiginosa e avassaladora que vivemos, que mexe e remexe com a economia, a sociedade, os valores, a política. Uma era de incertezas e imprevistos que atemoriza os mais impressionáveis e que têm crenças rígidas. É mesmo o fim do mundo, o que vivemos. Fim do mundo que conhecemos. Esse mergulho no inteiramente novo, no desconhecido inquieta, atormenta, aterroriza grande número de pessoas, talvez a maioria. Mais que as grandes mudanças, ainda muito incipientes, são as alterações abruptas e radicais no cotidiano que provocam as reações assustadas. A mestiçagem das ruas americanas. A quantidade de casais gays e lésbicas namorando pelos bares e cinemas das cidades. O atrevimento das mulheres com opinião, que afrontam os padrões masculinos de comportamento e aparência apropriados à mulher que sabe o seu lugar na sociedade. Como a muçulmana que abandona o chador, ou, pior ainda, decide que escolherá o parceiro de vida. São a perturbação do rotineiro e assentado, a subversão de valores, tudo às claras, tudo exposto em tempo real no Instagram, no Facebook e no Twitter, que provocam a reação antagônica extremada.
Mas, essa aversão às turbulências, confusões e exageros da transição não é justificativa legítima para ações de repressão e medidas corretivas. É preciso acomoda-las em narrativas ajustadas para assustar, mobilizar e conquistar os mais impressionáveis da audiência e apostar no contágio de outros tantos. O manto da religião é um recurso que funciona perfeitamente, principalmente para a revolução comportamental. Daí a busca da audiência dos evangélicos mais conservadores, dos fundamentalistas de todos os credos. Na política, é preciso nomear os inimigos e delinear suas ameaças. Para fechar a “América” aos imigrantes, em busca do perdido sonho americano, Trump é concreto. Quer construir um muro. Mas, como emocionar o público, solidário com a tragédia humanitária daquelas famílias, retratos de outras vidas secas, fugindo da tirania e da pobreza em seus países e imaginando encontrar no país de Trump a terra da fartura e das oportunidades? O presidente põe em cena os imaginários terroristas a invadir a “América” pela fronteira com o México.
Não se pense que essa estratégia vale só para os reacionários à direita, como o ocupante incidental da Casa Branca. São muitos os exemplos de inimigos imaginários rondando as democracias. Para Erdogan, na Turquia, era o “cabal secreto”, o Ergenekon, cuja erradicação legitimaria sua virada autoritária. Mas o alvo era mesmo a oposição democrática. O manto do islamismo era apenas um acessório conveniente. Nicolás Maduro, um tiranete improvisado por Chávez, inventou uma “guerra mundial do imperialismo americano contra o povo da Venezuela”. O povo que foge aos milhões da fome e da truculência produzidos pelo projeto bolivariano. Trump é o menos imperialista dos presidentes americanos. Ele quer o país voltado para si, não mais o guardião sempre alerta da democracia mundo afora. Ele quer fazer o país grande de novo e vê seu presente como o de uma Nação ameaçada pela China, na economia, pela imigração que flui pela fronteira com o México, na sociedade, e, pela ardilosa Cuba, a espreita-lo como um bergantim pirata pronto a acossa-lo pela costa caribenha.
Nós temos vários desses inimigos imaginários sempre presentes, como fantasmas desencarnados, nos discursos do novo governo. Como nas rodas mineiras, eles assombram os assombráveis e provocam um arrepio de horror localizado suficientemente forte para se espalhar pelas redes e manter, por algum tempo, pessoas crentes na possibilidade de que serão exorcizados.
Publicado originalmente no Blog do Matheus Leitão