Fui assistir Andrea Beltrão, na sua inspirada Antígona, no Teatro Poeira. Antígona é uma de minhas paixões literárias. Ela me inspirou a escrever sobre a tragédia, em A Era do Imprevisto, não como uma história fatalista de desfecho irremediável, mas como um exercício cívico sobre as consequências das más escolhas. Os cidadãos atenienses deviam mirar-se no exemplo de Tebas, para não repetir seus erros. A tragédia não é sobre o inexorável. É sobre a alma humana guiada por uma lógica que a condiciona a um final infeliz.
Enquanto as lágrimas de Andrea Beltrão desfaziam sua maquiagem e pintavam sulcos negros em seu rosto transfigurado, eu era assaltado pela força daquele conflito essencial entre o poder tirânico do estado e a defesa intransigente da liberdade. Ele não se resume, nem se resolve, numa simples equação liberal. Não há como preservar a liberdade individual, num mundo em que as pessoas se fecham ao convívio coletivo. A liberdade é uma construção comum. Se admitimos que ela seja sonegada a uma parte, todas as partes a perderão em algum momento. A tirania é sempre infiel, sacrifica até os mais ardorosos seguidores do tirano, para realizar seus degenerados fins.
Mergulhado no universo doloroso de Sófocles, eu ora pensava no avanço solerte do autoritarismo, por aqui em por outras partes, ora na insensatez do fogo que devasta a Amazônia e o Pantanal. Estamos diante da versão mais criminosa do complexo de Prometeu. Mas, o semideus trágico sabe o crime que cometeu. Os responsáveis reais pelas chamas amazônicas, não. O complexo de Prometeu é arrogante. O titã Prometeu roubou o fogo e o entregou “à estirpe humana, a fim de servir-lhe de mestre das artes numerosas, dos meios capazes de fazê-la chegar a elevados fins”. Ele é um dos modelos dessa lógica da irresponsabilidade, que leva a más escolhas seriais, e da negação teimosa das evidências e dos alertas sobre as consequências inevitáveis e brutais desses atos. Não por acaso, é visto pela maioria como herói e símbolo do progresso.
Que lógica é essa que empurra as pessoas a um destino trágico? É a lógica nascida da tensão entre o geral e o particular, entre vontade e limite. Voltamos a Antígona, cuja tragédia não se resume à simples contrariedade entre o dever da heroína para com o irmão e as leis de seu país.
Ela dramatiza o conflito entre a consciência privada e o bem-estar coletivo. Paralelamente à tensão entre o desejo dionisíaco e a temperança apolínea, ela revela com força os limites do exercício legítimo do poder e a necessidade da desobediência civil nos casos em que o governante não tem limites.
A lógica da tragédia contém um elemento de aprendizado na prática que permitiria a não repetição do erro e a mudança de comportamento. As tragédias têm uma dimensão ética e política, um sentido de vida cívica compartilhada que, quando perdido, leva à desgraça. Elas demonstram como os indivíduos, ao agir por si mesmos e como cidadãos em nome da comunidade, podem escolher e atuar com sabedoria. Os heróis trágicos nunca o fazem, para que encontrem seu destino cruel e nos ensinem sobre os prejuízos da ação insensata. A tragédia tem a função de revelar esses padrões típicos das ações e interações que levam aos piores resultados, sempre autodeterminados. Mostram, pelo exemplo contrário, as virtudes da ação orientada por boas escolhas.
Em Macbeth, Hécate ensina o equívoco de buscar causas externas em situações nas quais os principais responsáveis estão presentes na ação. Ela diz que o ser humano não precisa de maldições externas, porque “desprezará o destino, desafiará a morte e terá esperanças acima da sabedoria, da piedade e do temor”. A confiança é o maior inimigo dos mortais. É desta confiança cega que nasce o complexo de Prometeu, a ilusão de controle absoluto do fogo sobre a natureza. Ilusão alimentada por esperanças vãs e pelo excesso de confiança. Esta é a mistura fatal que elimina a possibilidade da precaução. Presume-se que perdemos o controle momentaneamente, mas podemos recuperá-lo de forma ampliada, com maior manejo do “fogo”, para avançar mais no desenvolvimento das artes numerosas e dos meios capazes de nos levar a novos e “elevados” fins. Vale lembrar o diálogo entre o corifeu e o titã acorrentado.
“Corifeu:
— Foste mais longe ainda em tuas transgressões?
Prometeu:
— Fui, sim, livrando os homens do medo da morte.
Corifeu:
— Descobriste um remédio para esse mal?
Prometeu:
— Pus esperanças vãs nos corações de todos.”
Os que viabilizam o escorregar para o autoritarismo cada vez mais visível em nosso país. Os que se calam diante do fogo amazônico, esperando que, ao final, seus interesses prevaleçam. Todos agem como os anti-heróis tebanos, com esperanças vãs e além de qualquer precaução. Volto a dizer que a tirania e a insensatez do poder não são autossustentadas. Elas precisam de viabilizadores, aqueles que imaginam que, para eles, tudo dará certo no final. Sabem das mentiras e deslealdades, mas sua própria ambição os torna surdos aos alertas do profeta Tiresias, que perdeu a visão, mas não o senso. Descobrirão tardiamente que construíram, com suas próprias escolhas, seu destino trágico. Mas, não sem antes causarem muita destruição e dor.
Originalmente publicado no Blog do Matheus Leitão/G1