No dia em que, adolescente, abri Cem Anos de Solidão e entrei em Macondo de mãos dadas com o jovem Aureliano e com o coronel Buendia, um, menino, indo ver o gelo com o pai, o outro, o mesmo, no fim da vida diante do pelotão de fuzilamento, soube que passaria o resto de meus dias rodeado de livros. Soube, também, que Macondo jamais deixaria minha memória. Tive certeza de que releria aquele relato numerosas vezes, sempre com o mesmo assombro. Ler Gabriel Garcia Márquez, mergulhando em seu-nosso mundo, é um espanto insuperável.
Gabo escrevia na música do espanhol falado em sua Colômbia. Como Guimarães Rosa escreveu-falou na música do Grande Sertão. É preciso ouvir a música das palavras. A sonoridade do encadeamento que mostra a beleza da meticulosa escolha feita pelo autor. Os grandes são assim, nunca uma frase escorrega bruta, rombuda, de suas mentes para o papel. Quando o fazem, ele as elimina impiedoso. Elas nos são entregues lapidadas, e as sabemos as únicas possíveis quando as lemos. São narrativas cujo sentido está sempre além da leitura banal. Elas contam estórias como quem abre portas de um labirinto para que descubramos seu sentido mais profundo. Provocam epifanias sempre singulares e delas saímos sempre melhores.
“Muchos años después, frente al pelotón de fusilamiento, el coronel Aureliano Buendía había de recordar aquella tarde remota en que su padre lo llevó a conocer el hielo.”
O começo extraordinário da narrativa de Cien Años de Soledad é um círculo perfeito, no interior do qual encontramos uma espiral que nos leva ao mais assombroso mergulho no imaginário, no cotidiano, no desatino, na tirania, em amores e saudades. Já sabemos tudo que ocorrerá, desde o início e, todavia, ao final descobrimos que pouco sabíamos.
Gabo tinha o condão das frases inquietantes e sedutoras, que aprisionam o leitor para sempre. Como escapar ao mistério e ao desafio desta, que abre o mundo do amor nos tempos do cólera?
“Era inevitable: el olor de las almendras amargas le recordaba siempre el destino de los amores contrariados.”
Uma madeleine original e amarga, tão distante do bolinho ligeiro de Proust.
Depois de reler Cem anos de solidão, logo após terminar a primeira leitura, encontrei um livrinho de capa dourada. O tesouro se anunciava, porém, não na cor da capa, mas no nome do autor: Gabriel Garcia Márquez. Eu já estava enfeitiçado pela magia de Gabo. Queria ler tudo o que havia escrito e o que escreveria e até os livros e contos que deixaria por escrever. Fiquei horas paralisado diante do título na capa interna, que transbordava-se contando uma vida inteira. Ele parecia não ter fim e a imaginação me aprisionava, fazendo-me incapaz de virar a página.
“Relato de un náufrago que estuvo diez días a la deriva en una balsa sin comer ni beber, que fue proclamado héroe de la patria, besado por las reinas de la belleza y hecho rico por la publicidad, y luego aborrecido por el gobierno y olvidado para siempre.”
Quando, finalmente, pude ler toda a história, descobri-me em um território literário no limiar difuso do jornalismo e da literatura, na tênue fronteira entre o imaginário e o real e aquele era o lead. Era o seu primeiro livro e já dizia tudo do admirável escritor que construiria estórias mesclando crítica, magia e real com a mesma fina estampa da vida.
Não me lembro de ler outro autor capaz de me fazer entrar em um transe hipnótico diante de um título, vagando horas pelo universo das hipóteses, antes de ler o que ele tinha a contar. E foram tantas as vezes em que seus títulos me arrebataram. Lendo e relendo o intrigante, El coronel no tiene quien le escriba, sufocado por uma ditadura de generais e coronéis, viajava em minhas próprias divagações. Seria bom se o final de todos os tiranos e algozes fosse a solidão absoluta, a espera torturante de algo que jamais chegará, pensava. Logo, a escolha singular de palavras mostra como seria essa espera:
“Durante cincuenta y seis años – desde cuando terminó la última guerra civil – el coronel no había hecho nada distinto de esperar. Octubre era una de las pocas cosas que llegaban.”
Garcia Márquez se foi com algum atraso na escritura de sua vida. Seria melhor que saísse de cena antes que sentisse seu cérebro brilhante ir se perdendo no olvido. Mas jamais será esquecido. Imagino que em algum lugar, um adolescente encontra-se neste mesmo momento com Cem Anos de Solidão, lerá na capa o nome do encantador de leitores, Gabriel Garcia Márquez, e entrará em Macondo inadvertido, de mãos dadas com aquele menino que, ao mesmo tempo via o gelo e seu fim diante do pelotão de fuzilamento. Antes que se dê conta, será enfeitiçado e nunca mais deixará de ler um bom livro. Sobretudo, nunca mais deixará de ler e amar Garcia Márquez. Descobrirá que a leitura pode nos projetar com inusitada intensidade no universo da fantasia, sem artifícios tecnológicos, apenas com as palavras e nos dizer coisas essenciais, espantosas, terríveis, mesmo, sem nos ferir. Ao contrário, limpando nossas almas e fortalecendo nossas vontades.