Afonso Borges vive na literatura. Não sei se vive da literatura. Coleciona escritores e livros e transforma, ambos, em amigos íntimos. Afonso tem um papo manso, de mineiro, que transferiu para a mais aconchegante das formas de entrevistar os autores que convida, desde os desinibidos e confiantes, aos tímidos e ensimesmados. Era apenas natural que Afonso escrevesse e que, na escrita, fosse breve como suas frases, mas com a densidade de sua vivência literária. Seus contos abrigam poesia, como flashes, como breves epifanias: “aura índigo”, “misto de calma e pânico”, “os olhos de carvão”, “um nó, absoluto e impossível”, “túneis escuros de esperança e ódio”, “o olhar triste do mundo”. Tem linguagem própria, autêntica inclusive nas referências a outros autores.
Os contos começam cotidianos, como um caso mineiro, desses que se conta ao pé do fogo, com uma pinga boa rodando a roda. Mas não terminam cotidianamente. Como em todo bom conto, irrompe ora o inesperado, ora o apenas insinuado, um toque de mistério ou uma pitada de absurdo. Não raro o puro absurdo do cotidiano de nossos tempos. Afonso Borges é da linhagem dos contistas econômicos nas palavras. Autor de contos curtos e densos, que começam pequenos e terminam metafísicos. Afonso Borges é poeta de origem e um autor de frases ricas de poesia e significado. Em qualquer páginas dos curtos contos, é possível encontrar pérolas como essa, de “A brisa, a queda, o Gueto de Vilna”: “A fala era dele, sabia. Mas a imaginação ia longe, perto do mal, longe do real.” Ou essa, de “A encruzilhada, o assovio e as garças”: “Era uma terra sem sol nem noite. Apenas a penumbra mágica das nuvens eternas. Um outro planeta, pensou o rapaz.” E essa, de “O sinal, a respiração presa e a eternidade”: “Olhos fixos nos pontos vermelhos que compunham o círculo do sinal. Ela não imaginava aquilo.” Ou, em “O vulcão, o rum e a bola dividida entre continentes”: “Nós somo iguais: nós nos fizemos. Saímos da casca sem reboco, mal-acabados, infernais. Nem Deus estava por ali, naquela hora.” Dá ou não ganas de saber do que se trata?
O conto é um gênero nobre da literatura, tratado com desprezo pela maioria dos editores no Brasil. Praticamente todos os grandes autores, em todos os tempos e lugares, foram exímios contistas: Machado, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Joyce, Hemingway, Tolstoi, Dostoyevski, Doris Lessing, Virginia Woolf e cada um pode adicionar os autores de sua predileção. O Brasil, e Minas Gerais, em particular, têm uma preciosa tradição no conto. Basta lembrar Murilo Rubião, que só escreveu contos, Rubens Fonseca, pois é, ele é mineiro sim, de Juiz de Fora; Luiz Vilela, de Ituiutaba; Lúcio Cardoso, de Curvelo; Ivan Ângelo, Barbacena; Carlos Herculano Lopes, de Coluna. Era natural, que Afonso Borges, mineiro de Belo Horizonte, colecionador de amigos escritores e livros, entrasse para a confraria mineira e universal dos contos. Da poesia e dos papos com autores, dos mais célebres aos iniciantes, Afonso passa à galeria dos contistas. Passar não lhe faz justiça. Salta, porque a qualidade dos contos desmente a ideia de um estreante no gênero. Afonso chega maduro, rebocado e bem-acabado para o que espero seja uma longa carreira como contista.