Conheci Jeanne Moreau na adolescência, nas telas do de Cineclube, em Brasília. Éramos leitores do Cahiers du Cinéma. Eu costumava traduzir as críticas do Cahiers para serem mimeografadas e distribuídas ao público. A primeira vez foi em Les Amants, de Louis Malle. Amor à primeira vista. Depois a reencontraria muitas outras vezes. Rendi-me definitivamente a seu talento vendo-a como Lidia em La Notte (1961), de Michelangelo Antonioni, que se tornaria meu cineasta predileto. Tive um óbvio caso de amor com ela no papel de Catherine, em Jules e Jim (1962), de François Truffaut. Um affair que devo ter compartilhado com milhares que viram o filme na época. Em seguida, fui cativado por Célestine, a personagem que Luis Buñuel lhe entregou em Le journal d’une femme de chambre. E o que dizer de Jeanne, em Joana, a francesa (1973, de Cacá Diegues, cantando “tu as le tropique dans le sang et sur la peau, geme de loucura e de torpor”, os versos da canção-título de Chico Buarque?
Eu era apaixonado pelo cinema e certos filmes tinham a capacidade de me sugar emocionalmente para seu enredo. Eu passava a vive-los não como espectador, mas como personagem. Eu me projetava na trama como se fosse uma testemunha ativa do que se passava com os seus protagonistas. O cinema e a literatura foram parte de meu projeto intelectual na juventude. As circunstâncias me afastaram dele. Fiquei com a literatura, mais portátil e mais adaptável.
A morte de Jeanne Moreau, na soleira dos noventa anos, me levou novamente àquele encontro inicial e ao meu período de maior imersão no cinema. Assisti Les Amants quase dez anos depois de seu lançamento. Era contemporâneo de outros filmes marcantes que fizeram parte de minha formação. Houve intensa e estéril controvérsia sobre Louis Malle, um filho da alta burguesia, ser ou não parte da Nouvelle Vague. Seu pecado original era ser burguês e sua deficiência principal era não fazer parte do grupo do Cahiers du Cinéma. Daquela geração que começou escrevendo sobre cinema e terminou fazendo filmes de grande importância estética, política e cultural. O que vi em Les Amants foi uma iconoclastia sedutora, uma crítica veemente do moralismo e do código de conduta, evidentemente hipócrita, da burguesia da época. Para mim, então, o mundo era tão claro e a posição a tomar tão simples. Se havia crítica ao comportamento burguês, era bom e estava do lado certo.
Les Amants saiu no mesmo ano (1958) que dois outros filmes franceses extraordinários, Les 400 coups, de François Truffaut e L’Année Dérnière a Marienbad, de Alain Resnais. Este último, com forte carga literária, fazia a ponte entre a Nouvelle Vague e o Nouveau Roman. Seu roteiro foi escrito por Alain Robbe-Grillet que, com Marguerite Duras, Nathalie Sarraute e Michel Butor conceberam esse movimento de renovação da narrativa literária. Foi um ano de criações cinematográficas inesquecíveis por toda parte. Morangos Silvestres, de Ingmar Bergman, Vertigo, de Alfred Hitchcock e This Angry Age, de René Clément, baseado no romance de Marguerite Duras, Un barrage contre le Pacifique, são desta mesma safra.
O filme fez mais sucesso pela abordagem explícita do sexo, do que pela representação da futilidade e do tédio da alta burguesia. Truffaut disse, com muito respeito, que “foi a primeira noite de amor do cinema, de um pudor absoluto”. Os angustiosos silêncios do filme foram atribuídos por alguns críticos ao fato de ele ter coincidido com o fim de uma longa paixão entre Louis Malle e Jeanne Moreau. A personagem dela chama-se Jeanne. Os enquadramentos da atriz são mesmo os de um olhar de paixão dolorida. O amor, no filme, é um sentimento desassossegado, incerto, inconstante. Jeanne Moreau se tornou um símbolo forte de mulher, não pela beleza sedutora, ou pelo estilo próprio de encenar, mas sobretudo por uma atitude estética e existencial.
Algumas atrizes e alguns atores mostram essa capacidade de adotar uma postura cênica que só consigo realmente definir como uma atitude estética. Ela não requer de explicitação adicional, revela-se por inteiro em cena. Atores com essa atitude não precisam dar entrevistas ou fazer manifestos para nos passar o sentimento do tempo, da época, da circunstância. Basta-lhes essa atitude cênica para revelar a alienação, expressar o tédio, mostrar indignação, ou revelar escolhas existenciais. Ela se mostra eloquente em um olhar, um gesto, um movimento de corpo. Jeanne Moreau, para mim, encarnou essa atitude estética, existencial, de forma exemplar.
Ao saber de sua morte e pensar sobre ela, me dei conta de que ela há muito já habitava no passado. Essa época de auge de um paradigma de cinema e de literatura, do espírito de uma época, desapareceu com o mundo que a concebeu. Era outro mundo, com outra tecnologia, outras categorias ideológicas, com suas dores e inquietações próprias. Não foi o meu mundo. Mas seu legado ainda era fundamental na minha adolescência e entrada da juventude. Eu tinha outras inquietudes, mas as questões existenciais tratadas por aquela geração me falaram fundo e marcaram meu modo de ver o mundo e de pensar. Jeanne Moreau interpretou muitas delas e dessa forma tornou-se parte essencial desses momentos constitutivos para mim. Não fiquei preso àquele passado, mas nunca deixei de lhe dar o valor que teve e tem. Hoje ele é como um tesouro soterrado. Os jovens que se dispuserem a fazer uma expedição arqueológica pelo cinema e pela literatura daqueles anos de início da Guerra Fria, com certeza encontrarão Jeanne Moreau entre os emblemas de um certo continente chamado Europa.