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O mapeador de ausências: nostalgia e recriação de um tempo perdido

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“Tudo o que não se converte em história se afunda no tempo”, lê-se ao final de O mapeador de ausências, de Mia Couto. Ele tece uma trama de ausências e esquecimentos, de resgate e rejeição dos tempos passados. Revisita o passado colonial de seu país, a guerra de independência, o racismo. “Nós não torturamos, apenas em alguns casos extremos aplicamos o que se pode chamar de métodos mais persuasivos. Mas isto aqui é diferente da metrópole. Quem bate nos presos não somos nós. É um preto. Um da raça deles.”

Mia Couto retorna a Beira, sua terra natal, após o confinamento, em busca de sua infância e encontra o pai, melhor dizer as lembranças e esquecimentos sobre seu pai. De tão forte a presença do pai, poeta e militante da resistência anticolonialista em Moçambique, passa a escrever um romance, uma quase-fusão da ficção com a biografia e a autobiografia. O escritor encarna o personagem como o filho ao pai. Daí surge a veracidade inarredável da ficção, mais real do que o vivido e mais vívida do que as memórias.

Em depoimento sobre o que o levou a esta obra, Mia Couto conta que houve momentos em que não sabia dizer se os dedos que dedilhavam o teclado do computador eram seus ou de seu pai. E, de fato, nessa busca do tempo perdido, de muitas idas e vindas, as histórias de pai e filho frequentemente se entrelaçam e se confundem. Os silêncios em vida são hiatos que podem ser completados pelo relembrar e pela coleta de histórias, de versões pessoais de cada um dos testemunhos daquele passado. A vida de cada um é, ela mesma, um feixe de experiências reais e de impressões filtradas pelos vazios e pelas noções do vivido que carregamos como memória e como vivência. Escrevendo sobre minha leitura e pensando no livro que meus olhos leram, sei que este sobre o qual escrevo não é o livro que de fato li, nem é o livro escrito por Mia Couto, nem será aqueles lidos por todos os seus outros leitores.

Este é o mistério e o encanto da literatura. Várias pessoas se põem a conversar sobre um romance lido por todas e descobrem que cada leitura tem um realce distinto, uma coleção própria de significados. Toda leitura é feita com os olhos de nossas emoções. Uma leitura indiferente ao narrado é um desacato ao autor ou um julgamento de desgosto. Desse mosaico de impressões de leitura retira-se a riqueza de possibilidades abertas pela escrita. São trilhas que, se as trilhamos, nos levam a entendimento diverso. A obra originalmente criada pela sensibilidade do escritor será sempre inapreensível e, quase sempre, de difícil reprodução até mesmo pelo próprio autor. Ao buscar reescrever o já escrito, termina por criar algo inteiramente novo.

O Mapeador de Ausências é um livro de múltiplas leituras e significados. Daqueles que percorrem uma trajetória de reconstrução do passado e pode nos afogar em nossas próprias lembranças. A nostalgia da cidade natal, dos registros de família, da história já contada e sabidamente incompleta, é contagiosa. Nos remete a nosso próprio passado, às nossas ausências e esquecimentos. Há um descolamento entre o vivido e em boa medida esquecido, e a lembrança do passado que carregamos, ora como fardo, ora como lapsos dolorosos. Às vezes, alguns lapsos são apenas um vazio a ser preenchido para compensar a memória apagada.

García Márquez reescreveu o romance passado em sua vila natal, Aracataca, levando-o para a mágica Macondo, ao perceber esse descolamento entre o passado e a memória do passado que, no reencontro, redefine a busca. No começo dos anos 50, quando seu primeiro romance, inicialmente intitulado La Casa, já ia bem adiantado, García Márquez acompanhou sua mãe a Aracataca para vender a velha casa da família. Foi então que compreendeu que escrevia um romance falso. Seu povoado não era nem sombra do que havia conhecido em sua infância. Mudou o título e o nome da vila, que se tornou Macondo, como as grandes árvores da região. Foi seu primeiro relato a se passar na mágica Macondo. Li esse registro em um artigo de 2018 por Alberto López para El País, quando García Marquez foi homenageado aniversariamente pelo Google.

Svetlana Boym escreveu em seu ensaio sobre a nostalgia que são muitas as faces desse sentimento de falta e saudade. A que mais me interessa é aquela que constrói em nossa memória uma visão de nossa terra natal irreal e irrecuperável. Por mais que mergulhemos nessa cidade contemporânea e ouçamos as mil e uma histórias que os moradores sobreviventes daquele passado tenham para nos contar, não reencontramos a cidade que buscamos. É uma cidade afetiva, intangível. A saudade do que fomos e do que poderíamos ter sido. É desse desencontro que retiramos o sentimento de perda e deslocamento, passado e presente. Svetlana acerta em dizer que essa busca nostálgica de nosso lar primordial leva à reconstrução de um local idealizado, mosaico de sonho e pesadelo, lembrança e desejo.

Leio O Mapeador de Ausências como a busca de um tempo que não permite restauração. “E tenho agora todo esse passado olhando para mim”, lê-se ao final do primeiro capítulo que tem o sugestivo título de “Os que falam com as sombras”. Ao entrar neste passado, “torno-me uma espécie de autor póstumo”, escreve Mia. Ou, mais para o final, “sem as vozes da infância toda a casa fica vazia… Mas esta casa está mais que vazia, está morta. (…) Talvez haja um fio de vida que nos liga. Os meus passos produzem um eco que me torna estrangeiro. Não sou eu que caminho dentro do meu corpo.”

Foi ao ler este romance-memória, que me lembrei de Svetlana Boym sobre a nostalgia e me dei conta do que me inquieta quando penso na cidade onde nasci e que jamais consegui reencontrar, o Curvelo de minhas memórias e dos relatos extraordinários de Guimarães Rosa. Já nem sei se o Curvelo de que me lembro é o do meu nascimento ou o do sertão das veredas de Rosa, onde habita “o médico”. Penso nela como um registro impreciso perdido em um tempo imemorial. Ou, como escreve Svetlana, a nostalgia do nosso lugar original não é somente sobre o passado, ela pode ser retrospectiva ou prospectiva. Creio que essa busca relatada por Mia Couto, do lugar de origem, após o isolamento radical que nos foi imposto pela nova peste, é também sobre o futuro, o depois desse pesadelo enorme e global. “Bom, era assim antigamente. Agora já nem sei, o mundo anda todo ao descontrário”, sentencia o pescador Arlito. Ao final, a dedicatória a Diogo Santiago expressa por inteiro essa nostalgia: “esse guardião de histórias que carrega ausências e silêncios como se fossem sementes.”

Penso numa retrotopia que se aproxima da utopia ao falar, no futuro, de uma visão do passado reinterpreta, revive de outra maneira e, desta forma, refunda passado e presente. Tudo se torna imaginado, mesmo o real, tudo é objeto da imaginação e de iluminações, como diria Benjamin, insights, visões interiores de cada um, epifanias pessoais. Não é possível fazer o passado-passado presente. Restaurá-lo tal como realmente foi, transformá-lo numa espécie de passado-presente perene, que nos possa acompanhar por onde andemos.

O passado-passado é um tempo perdido e reemerge no relato de historiadores aplicados após longa e dificultosa busca. Nunca é reconstituído como realmente foi. “Este país tem medo da sua própria história.” Quantos países compartilham esse medo? Muitos. Certamente o meu. No relato de Mia Couto, o passado-passado é tecido por memórias, relembramentos, que montarão sempre versões imperfeitas de como ele realmente foi. “As viagens são assim, meu caro amigo, sabemos do seu propósito apenas depois de regressarmos”, diz o padre Martens ao narrador. Talvez ele não soubesse o que foi buscar ali, mas já sabia o que iria levar de volta. O que importa é sempre a travessia. Nela reside a nossa verdade.

Há mais o que ler neste romance. Ele é também — e creio que qualquer busca do tempo perdido será — uma indagação metafísica. Do por que nós, por que conosco, do existirmos, a que será que se destina? “Agora estou demasiado velho para morrer”, diz o farmacêutico Natalino. “Há coisas que não têm depois”, diz Arlito, o pescador. “Quem já morreu não gosta de falar da morte”, explica mais adiante. O pai de Diogo, Adriano Santiago, explica a Benedito, quando este lhe diz ser um bom patrão: “Eu faço isto não apenas porque tu és uma pessoa. Faço-o para eu não deixar de ser uma pessoa.” Revoltado com sua “puta vida”, o poeta-pai se explica: “estou assim porque me sinto impotente, vazio”. Em outro momento, lemos: “aquela porta de ferro separa dois infernos. Dentro de mim um anjo exibe um sorriso diabólico.”

Leio essa viagem memorial e afetiva de Mia Couto também como registro da história ficcionalizada o suficiente para dar ambiência à estória que a ela se entrança. Basta uma frase, para que se saiba o horror das guerras coloniais em África, muitas vezes levadas a cabo por soldados-adolescentes, dos quais tiraram o direito de serem crianças. “É sempre assim com estes rapazes: por mais tamanho que tenham, a farda fica-lhes demasiado grande. Não é corpo que lhes falta. É a idade.” Mais adiante, Sandro escreve a sua tia, “tudo isto é tão estranho, tão irreal (…) Nem nós somos soldados. Somos apenas o gatilho vivo de mandadores sem rosto.” São registros da decadência miserável do colonialismo, sua intimidade com o racismo e o machismo, e a persistência deles nas tramas da desigualdade.

As cicatrizes do colonialismo, quando entranhadas nas vísceras da cultura dominante, estão sempre abertas e parecem inapagáveis do tecido social pós-colonial. “O que mudou foi assim: antes eu não existia, agora sou invisível”, diz um dos personagens. Ou, mais adiante, “estavam impedidos de se amar, eram de raças diferentes. Puseram termo à vida como um Romeu e Julieta dos africanos trópicos. O drama de um amor impossível pode ser mais subversivo que mil panfletos políticos. E aquela história tão simples abalava, numa penada, toda a propaganda de um Portugal sem raças e sem racismo.”

Este é livro de várias leituras. Cada leitor adicionará às compreensões dos que os precederam as suas próprias versões. Assim se completa a obra literária.

Mia Couto, O mapeador de ausências, Companhia das Letras, 2021.