Um fato real, a morte do guardador da biblioteca do imperador dom Pedro II é transportado para o terreno da ficção por Marco Luchesi e transmuta-se em uma narrativa de paixão por livros e bibliotecas. A ficção é o território da liberdade absoluta, onde o fato pode ser dissolvido num jogo infinito de ilusões. Luchesi leva seu personagem para um espaço entre o fato e a fantasia e com ritmo marcado tece uma teia formada por intrigas entrecortadas. Escritor de espírito poético e grande erudição, constrói frases rítmicas e camufla entre elas sua vasta erudição, em citações sutis e referências elegantes. Como um alquimista mistura metáforas e recortes narrativos e consegue produzir ouro dessa mistura entre uma biblioteca, seu criador, seu guardador, o bibliotecário do imperador, e seus desafetos.
O que o autor não tenta esconder é sua paixão pelos livros. E como todo apaixonado compartilha com seus leitores sua própria geografia imaginária da biblioteca de dom Pedro II. “A biblioteca particular de dom Pedro é uma nuvem, nuvem dom Pedro, de livros expansivos, como as fronteiras do Império, nuvem de sonhos, nuvem latente”, no fim do Segundo Reinado, “esse pequeno e doloroso apocalipse”. Bibliotecas são sempre seres maiores que a soma dos livros que guardam. Era assim A Biblioteca de Babel de Jorge Luis Borges; ou a biblioteca da abadia de Melk tão central na trama de O Nome da Rosa, de Umberto Eco, ou a biblioteca do Cemitério dos Livros Esquecidos de A Sombra do Vento, de Carlos Ruiz Zafón; relato de extraordinária prosa poética. Território de silêncio reverencial e quase sagrado, bibliotecas são mutáveis, mágicas, labirínticas. Tornam-se misteriosas e quase assustadoras à noite, nas madrugadas insones, quando seus corredores escurecidos parecem ter à espreita de quem vaga por eles autores e personagens prestes a assalta-los para sequestra-los definitivamente para o terreno nem sempre confortável das fantasias. “A geografia dos livros é tão complexa como quando se pretende explicar o mistério do mal na teologia cristã.”
Nas bibliotecas, convivem contrários e afins. Teólogos e materialistas; conservadores, marxistas e anarquistas; realistas, simbolistas, expressionistas e autores fantásticos. Os grandes personagens do mal podem ficar por décadas ao lado de grandes figuras do bem. Heróis de fato, unem-se a heróis imaginários. Anjos e demônios convivem, numa atmosfera de encantamento que dispensa exorcismos. “Nada mais incerto e heterogêneo, precipitado e fugaz, poroso e descontínuo do que uma biblioteca.” Quem já passou uma noite andando entre as estantes repletas de tesouros de uma biblioteca, no alto da noite, dificilmente não terá experimentado a magia desse ambiente, certa inquietude com o silêncio ainda mais espesso saído das sombras, que só a leitura pode dissipar. Todos os que viveram em meio aos livros, ao longo de sua formação, da infância, passando pela adolescência e chegando à maturidade, sabe que não há experiência comparável, encanto mais durável que aquele que sai de suas páginas. Bons livros não envelhecem, podem ser relidos numerosas vezes e, como sábios que se atualizam, têm sempre a capacidade de iluminar, de propiciar epifanias, de acolher e confortar o leitor. Só quem mantém com os livros essa ligação amorosa, de impossível rompimento, é capaz de escrever histórias como esta de O Bibliotecário do Imperador.
Marco Luchesi não deixa sequer de trazer ao leitor o pesadelo maior dos amantes dos livros, o incêndio da biblioteca. É o terror alcançando não apenas as pessoas, mas seu conhecimento, suas memórias e suas fantasias. Como lembrou o psicanalista Gérard Haddad, autor de Os Biblioclastas, o ódio aos livros desemboca frequentemente no racismo, no sentido da negação de outra cultura. Por isso o amor aos livros e a necessidade compulsiva de preserva-los e guarda-los nada tem de fútil. Basta pensar nas bibliotecas de Timbuktu ardendo no fogo da intolerância no século XXI, ou na biblioteca Universitária de Asturias abatida pela Guerra Civil de Espanha, no século passado. Não foram poucas as bibliotecas queimadas ao longo da grande marcha da humanidade, como conta Fernando Báez na sua História Universal da Destruição dos Livros. Marco Luchesi, como um amante apaixonado distribui ao longo de seu belo livro, de poucas páginas, ex libris, como se fossem cartas de amor. Ele teme, como seu personagem, pelo destino dos livros e das bibliotecas.
É um livro inesperado e singelo, ao mesmo tempo estilística e poeticamente sofisticado. É essa apuração literária que passa pelas baixezas e fraquezas humanas, em um ambiente de decadência e dissolução no ocaso do Segundo Reinado. Um clima de perdição e dúvidas. “Um homem vaga na Primeiro de Março, olhos crivados na esfera dos sonhos, indeciso entre partir e não partir. Ponto de fuga. Noite sem lastro, destino e capitão. Desaba sobre o cruzador Parnaíba a mãe das aflições. Um coche negro puxado por cavalos brancos.” O imperador caminha pela história como uma sombra, ou um espectro, criador da biblioteca que se desfaz como um legado dissipado por gente perdulária, sem noção de seu valor. Luchesi não respeita “fronteira entre vida e imaginação”, para ele, a “idade das coisas límpidas e claras já passou”.