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O Rio que não existe mais em um Brasil primordial

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Ler os relatos do “compêndio mítico” de Alberto Mussa é um fascinante passeio por um Rio de Janeiro invisível. Seus principais personagens são mamelucos, indígenas, negros, em uma paisagem que não existe mais. Mas com A primeira História do Mundo (Record, 2014) essa experiência é, talvez, ainda mais radical. Enquanto o autor nos ajuda a elucidar o primeiro homicídio da cidade, em 1567, eles nos conduz por uma fascinante viagem por um Rio de Janeiro originário, que acabara de ser transferido “do istmo entre o do Cara de Cão e o Pão de Açúcar para o cume do morro quer seria o do Castelo”. O Cara de Cão, e o Castelo não existem mais, o Pão de Açúcar remanesceu e se tornou ícone da terra que nasceu ali naquele espaço pantanoso, mas em uma paisagem muito distinta da original.

Era um Rio de Janeiro diminuto, de algumas poucas centenas de habitantes, no qual a língua dominante não era o português, a língua geral era o tupi. Novíssimo, já existia, porém, uma “cidade velha”, fundada por Estácio de Sá, em 1565, no istmo entre o Cara de Cão e o Pão de Açúcar, com “dois ou três arruados de casas de pau a pique”. A cidade nova, era um vilarejo amuralhado, que dormia a portas fechadas, dentro do qual a população era majoritariamente constituída por mamelucos e indígenas temiminós, com alguns poucos portugueses, geralmente nas posições de topo. Estamos em um Rio primevo, com mais homens que mulheres, “onde não pode haver virtude”. Nele foram plantadas as raízes primitivas da mentalidade que hoje conhecemos como carioca. Vivia ainda a iminência da guerra. A grande ameaça eram os tamoios, “dos gentios mais insubmissos da costa”.

O texto elegante de Mussa, sempre reminiscente dos relatos de Jorge Luiz Borges, nos vai conduzindo, simultaneamente, pela trama daquele crime também original e por essa vila desconhecida que é o primeiro Rio de Janeiro. O enredo é construído em torno da leitura comentada pelo autor dos autos da devassa desse crime. Ao nos encaminhar pela intriga por meio dos perfis dos nove suspeitos que se entrelaçam e entretecem, ele vai construindo um Rio de Janeiro espectral, imaginário, tantas as referências desaparecidas, perdidas nas camadas de cada estágio da história dessa cidade. Com tantos suspeitos, em uma população tão escassa e poucas mulheres, todavia, o segredo só pode estar em uma mulher, Jerônima Rodrigues, a viúva da vítima, Francisco da Costa, um serralheiro.

Esse mergulho no passado remoto do Rio nos revela personagens cujos traços conformam hoje vários dos arquétipos dos habitantes da cidade. Outros ficaram apenas como registros, às vezes imprecisos, da história do Rio e do Brasil. Mussa nos fala das culturas das várias populações indígenas que viviam nos arredores do Rio mítico, marcado por estórias de tesouros perdidos, mapas escondidos e do mito de mulheres guerreiras, “sem marido e sem lei”, as Amazonas. Nos autos de Alberto Mussa, as Amazonas assumirão uma outra personalidade e ajudarão o leitor a compreender alguns dos mistérios do crime em investigação. As “mulheres nômades” da devassa detalhadamente examinada pelo autor.

Não insisto no ambiente físico do livro para desviar a atenção do leitor do crime no qual a narrativa está centrada. Muito ao contrário, este Rio tão longínquo do que conhecemos, neste Brasil inicial, compõe um certo clima de estranheza, que torna o enredo do crime ainda mais interessante. Mussa, tece essa narrativa numa rica trama alusiva de Jorge Luis Borges e Edgar Allan Poe, com ecos de vários outros mestres. Mussa vai afastando as brumas que confundem pistas e mitos, até que o crime se elucide em toda a sua inteireza, mesmo tendo que se valer apenas dos autos da devassa.

Leitura rica e agradável. Não precisa simplificar a linguagem, nem abastardar a narrativa, como se quer fazer com Machado de Assis, para fazer-se acessível. Ao contrário, mantém-se fiel à riqueza da língua portuguesa, às ambivalências às vezes até poéticas do tupi e aos fundamentos históricos e geográficos da narrativa. Propõe-se ao que os bons escritores se propõem: atrair o leitor, sua atenção e fazer-se compreendido pela qualidade da trama, pelos encantos do enredo, pelo que adiciona de novo e de valor. Bem escrito e bem enredado, não há como escapar ao fascínio de A Primeira História do Mundo.