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Lúcio Cardoso, o gênio que brilha

  • Categoria do post:Cultura

O centenário de nascimento de Lúcio Cardoso foi celebrado no Brasil, mas não em Curvelo, cidade em que nasceu, em 14 de agosto de 1912. Lá esse dia passou em silêncio. Talvez Lúcio Cardoso nem seja mais lembrado como filho daquela terra sertaneja, onde a ingratidão não era hábito. Sei, porque também sou de lá. Curvelo fica mais pobre e muito menos interessante, sem a memória viva de Lúcio Cardoso.

Esse autor curvelano, apaixonado pelo Rio de Janeiro, sempre foi um mistério para mim. Mesmo entregue à vida carioca, sua literatura nunca perdeu o travo sertanejo. Sei disso por sabido, também curvelano e também apaixonado pelo Rio. Lúcio Cardoso foi criador de capacidade múltipla, romancista, contista, poeta, teatrólogo, roteirista, saído daqueles confins do sertão que hoje se mostra ingrato com os cultos. Sertão que nos deu dois expoentes – e vizinhos – da literatura: Lúcio Cardoso e João Guimarães Rosa.

Em Maleita, seu romance de estréia, Curvelo e o Sertão Cerrado têm presença mais forte, não apenas na linguagem e nos sentimentos:

“Eu chegava então a Curvelo, ardendo para penetrar o sertão.”

“Compreendia que o pensamento de Elisa voava sobre a estrada e se detinha em Pirapora. Arrastava de Curvelo o temor de quem não conhece o mundo. Insulada na cidade pobre e triste, aprenderia a amar a tranquilidade daquele atraso. Nela os dias corriam numa serenidade sem limites. A gente era simples. A vida igual.”

“O sertão, agora, subjugava-o. Estava ali, diante de mim, em toda a sua grandeza trágica, a força oculta que vinga o rio maculado e a mata devastada pelo homem.”

Eram dois irmãos Cardoso. Lúcio, escritor, e Adauto Lúcio, político, e uma irmã, Maria Helena, autora das extraordinárias memórias: Por onde andou meu coração (José Olympio, 1967) e Vida Vida (José Olympio, 1973). Os dois, Lúcio e Adauto Lúcio me impressionaram em momentos distintos da vida. Lúcio pelas dificuldades iniciais que tive para ler Crônica da Casa Assassinada, pelo qual comecei minha aventura por seus escritos, na minha tenra juventude. Aquele universo sombrio, narrado em uma estrutura vocabular rica e densa me pareceu quase intransponível. Não que fosse difícil de ler ou entediante. Ao contrário, minha dificuldade nascia da perplexidade de encontrar construções inesperadas, que me faziam divagar e perder o fio da meada do texto. Estava aí, para mim, o mistério de Lúcio Cardoso. E tive que recomeçar sua leitura tantas vezes, sempre tangido dele por divagações que me provocava tão imediata e repetidamente. Nunca me livrei desse mistério, sempre o leio com espanto e sou arrastado para as divagações, como se por ele mesmo transportado para mais dentro e para além de suas estórias.

Adauto Lúcio Cardoso fez carreira política na UDN e chegou à presidência da Câmara dos Deputados. Conspirou a favor do golpe de 1964 com o Marechal Castelo Branco. Revisitei a atuação desse curvelano, próximo de mim na origem sertaneja, mas meu antípoda no universo político e ideológico, quando trabalhava em minha tese de mestrado sobre o Legislativo durante a ditadura no Brasil, para o Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília. Mas Adauto Lúcio Cardoso tinha uma outra visão dos rumos do golpe e, por isso, com ele se desentendeu por, pelo menos, duas vezes, de forma exemplar. A primeira, ao renunciar à presidência da Câmara, em 1966, em protesto contra a cassação do mandato de deputados oposicionistas. Mais adiante, aceitou o convite de Castelo Branco para ocupar vaga no Supremo Tribunal Federal. Em julgamento sobre a constitucionalidade do Decreto-Lei do general-presidente Ernesto Geisel, que instituiu a censura prévia de livros e periódicos, foi o único a votar pela inconstitucionalidade. Voto vencido, retirou a toga, atirou-a em sua cadeira e deixou o plenário do tribunal, em atitude inédita de indignado protesto, muito previsível em um curvelano. Em seguida, requereu sua aposentadoria. Posteriormente, iria às tribunas, como advogado, para defender o semanário Opinião contra a censura prévia. Reencontrei nessas atitudes desabridas o espírito aguerrido do Curvelo.

Das memórias de Maria Helena fiquei sabendo, primeiro pelas mulheres sertanejas de minha família: minha avó, minha mãe e minhas três tias. Elas falavam delas com tal intimidade, como se fossem parte de suas próprias lembranças, que parecia sempre que Lelena, a autora, chegaria a qualquer momento para compartilhar a conversa. Maria Helena falava de muitas coisas que elas haviam vivido ou lhes haviam sido contadas por minha bisavó, Zizinha. Quando, finalmente, li Por onde andou meu coração, senti tal proximidade, que parecia estar ouvindo histórias de uma tia-avó. Só pude ler Vida vida, muito depois, pois estava fora do Brasil, em estudos. Só o fui ler dez anos após a sua publicação. Senti a mesma intimidade, embora desse não houvesse sabido pelas minhas curvelanas. Comentei varias passagens dele, porém, com minha mãe e minha avó, que adicionaram as suas próprias lembranças aos fatos por ela narrados. Essa intimidade tinha a ver com nossa conterraneidade, mas era também resultado de serem as duas obras de Maria Helena Cardoso exemplares no gênero memorialista.

Com seu irmão, Lúcio Cardoso, foi uma relação de espanto e encantamento com sua prosa forte e poética. Ele me espantava por suas ousadias formais e pelo rico e denso universo vocabular. Como logo no início da Crônica da Casa Assassinada:

“(… meu Deus, que é a morte? Até quando, longe de mim, já sob a terra que agasalhará seus restos mortais terei de refazer neste mundo o caminho do seu ensinamento, da sua admirável lição de amor, encontrando nesta o aveludado de um beijo – ‘era assim que ela beijava’ – naquela um modo de sorrir, nesta outra o tombar de uma mecha rebelde dos cabelos – todas, todas essas inumeráveis mulheres que cada um encontra ao longo da vida, e que me auxiliarão a recompor, na dor e na saudade essa imagem única que havia partido para sempre?”

Pronto, lá ia eu, impossibilitado de continuar a leitura, atrás do volumoso rio de indagações que esse trecho dispunha para mim, como um território abissal a ser ele mesmo desbravado.

Retornava ao texto só para, novamente, parar na abertura do parágrafo seguinte:

“Que é o para sempre senão o existir contínuo e líquido de tudo aquilo que é liberto da contingência, que se transforma, evolui e deságua sem cessar em praias de sensações também mutáveis? Inútil esconder: o para sempre ali se achava diante dos meus olhos.”

Para um leitor compulsivo de literatura e filosofia como eu, uma frase dessas era senha irrecusável para divagar sobre as noções do infinito, da natureza mutante do ser, da volatilidade das sensações, desse encontro repentino do para sempre diante de nossos olhos. Quando li Tempos Líquidos, de Zygmunt Bauman, lembrei-me imediatamente do “existir contínuo e líquido” de Lúcio Cardoso que, de certa forma, também levava a vidas fragmentadas.

Essa primeira leitura entrecortada por divagações quase febris da Crônica da Casa Assassinada foi, assim, acidentada por descobertas de sendas espantosas, por todo o trajeto. A forma pela qual Lúcio Cardoso descrevia os sentimentos tormentosos daquela Crônica nunca parou de me espantar. Como seu relato – um dos muitos – sobre o alheamento da tristeza e a inutilidade da realidade, quando se está mergulhado em sua própria dor: “nunca as estrelas haviam brilhado mais inutilmente”.
 
Essa expressão pungente merece ser vista em seu contexto:

“Eu chorava, e no entanto aquelas lágrimas não me traziam nenhum alívio. Deixei-me escorregar ao chão, encostando o rosto ao tronco da árvore, os olhos fechados. (…) Não sei quanto tempo assim fiquei, sei apenas que, ao reabrir os olhos, vi que era noite, e as estrelas brilhavam. Nuvens céleres, negras, corriam arrastadas pelo vento. Nunca as estrelas haviam brilhado mais inutilmente. (…) Sim, as estrelas brilhavam – mas era como se o mundo não existisse mais para mim, e as coisas que eu via e me cercavam fossem apenas coisas desenhadas e vãs, sem nenhuma realidade positiva.”

Já quase ao final daquela alucinada jornada de sentimentos tormentosos, uma outra construção síntese desse ambiente desolado:

“Agora, há em torno de mim um lago estagnado de silêncio. E divisando finalmente o rosto da morta, agudo sob o lenço que o cobre, sinto que a sala não existe mais, nem existem as pessoas que me fitam, nem a nossa história, nem o sonho de que somos a viva carnação. Somos apenas nossos impulsos, desatinados, e que vogam acima do tempo e da verdade como inumanas correntezas.”

Essas mesmas indagações metafísicas encontraria também, em sua novela O Desconhecido:

“E, de repente, sentiu a profundeza com que penetrava em seu ser a idéia da sua irremediável permanência, do insolúvel de todas as questões que há tanto tempo, desde a infância…”

Essa frase parada no ar, me lançava no terreno de elucubrações quase febris. Como interromper, assim sem mais, uma frase tão cheia de significados? Mas, ele logo retomaria essa vereda sombria para lhe dar mais alento literário, ainda que não lhe desse esperança:

“Ainda mais absurda era a sua presença naquele mundo; pois o que quer que fizesse, a agitação de que se cercasse, o ambiente em que procurasse se refugiar, nada alteraria esse fundo que ele tão bem conhecia, esse eu irredutível e amargo que formava a camada mais profunda do seu ser.”

Suas inusitadas e sempre soturnas construções poéticas aparecem sempre, inesperadas, em praticamente todos os seus escritos.
Outra afinidade sertaneja que descobri em Lúcio Cardoso é sua aversão às queimadas, que trata de forma literária e pungente. As queimadas são, ainda hoje, uma das maiores ameaças às áreas florestais brasileiras, em todos os ambientes. Mas, talvez seja no Cerrado do sertão onde as labaredas calcinam da forma mais implacável e quase imbatível grandes espaços de vegetação. Na novela O Desconhecido, diz o seguinte:

“Nas terras enegrecidas pela queimada, as primeiras gotas tombavam surdamente. Nos restos fumegantes das plantações, longos penachos de fumo se esfacelavam ao vento. Nenhuma cor sobressaía dessa paisagem triste. Ao longe, dominando a pesada atmosfera, urubus giravam em torno de um animal morto à beira de um açude. Na água estagnada, essas asas cansadas se refletiam como a derradeira palpitação de uma vida impossível.”

Metafórico e belo, seu universo poético soturno aparece também nas peças que escreveu para o teatro. Em O Escravo, por exemplo, há achados como: “Esta surda luta contra objetos que me parecem tão inabaláveis nos seus antigos direitos…”. E, também: “É preciso renovarmos constantemente o mundo em que vivemos, Isabel, para que os objetos não nos acusem na sua muda linguagem, do mal que cometemos e do bem que deixamos de fazer.” Ou, ainda: “Por uma vida inteira de palavras que nada significam, dois minutos de silêncio que exprimem tudo.”

A leitura de Lúcio Cardoso é assim. Ela nos surpreende repetidamente com momentos de elevada literatura, de poesia imersa em uma prosa implacável, que mergulha pelos escuros da alma e retrata desencontros permanentes.

O Escravo sempre me lembrou Huis Clos (Entre quatro paredes), de Sartre. Em ambas as peças, os personagens parecem forçados a viver para sempre juntos. Em Sartre, eles estão na eternidade do inferno, sem saída. Esse destino faz Garcin, um deles, concluir que o inferno são os outros. Na peça de Lúcio Cardoso, Augusta, manipuladora, pretende manter a todos prisioneiros das brumas de um passado tóxico, encerrados naquela casa irreformável. A vida deles já é um inferno, mas ela o deseja ainda mais tenebroso.

“Já pensei em tudo. Viveremos ombro a ombro, vigiando os nossos próprios movimentos, as nossas palavras e os suspiros que não pudermos conter no fundo do coração. Não dormiremos uma só noite de sono tranquilo, não ousaremos levantar os olhos uns para os outros, e o ar que respirarmos será envenenado pelas suspeitas cotidianas.”

Um inferno mais concreto e real no qual Mário, “escravo de um morto”, porque “todos os seus sentimentos estão aprisionados a uma forma inexistente”, não pretende viver.

Não é um universo ameno o que Lúcio Cardoso constrói com meticuloso artesanato das palavras. Mas é um universo esteticamente grandioso, literariamente marcante, que situa seu autor entre os grandes da literatura brasileira. Difícil é entender sua invisibilidade, quando se fala da melhor literatura produzida no Brasil. Ela talvez não o surpreendesse. Ele talvez se visse como parte da estirpe brasileira do “escritor maldito”. Leu Julien Green e Byron, aos quais admirava e por eles se deixou influenciar.

Em vida, foi um escritor renegado, relegado e esquecido, por causa das polêmicas que travou, por se ter oposto ao regionalismo então dominante, por produzir um romance psicológico profundo, imerso em um universo vocabular rico e rebuscado, religioso, iconoclasta, no qual a violência, o crime, o incesto e o homossexualismo apareciam com tal insistência que tinham a evidente intenção de chocar. Foi proscrito pela esquerda, o que em certas rodas tem o efeito de uma sentença de morte.

Seu talento, contudo, se sobrepõe à irritação que seu espírito polêmico e briguento – afinal era curvelano – possam provocar. Agripino Grieco, um crítico implacável, viu nele “talento admirável e precoce” e foi o primeiro, talvez o único, a descobrir em seu rico texto de prosa o fio da poesia: “é um romancista, mas poderia ser também, se lhe aprouvesse, um grande poeta trágico”. A Mário de Andrade desgostavam sua concepção artística e sua visão social, mas percebia a importância de sua obra: “seu livro é forte. Artisticamente me pareceu ruim. Socialmente me pareceu detestável. Mas percebi perfeitamente a sua finalidade de repor o espiritual dentro da materialística literatura de romance que estamos fazendo agora no Brasil”.

Inicialmente realista, rapidamente se entregou ao delírio, ao abismo das paixões fortes e da tristeza funda e inesgotável. Em seus Diários, escreveu que sabia que seus escritos eram tristes, movidos por uma obsessão com a morte.

“E que é a morte senão a essência de todos nós? Perdemos tudo, transfiguramo-nos, e bons e maus, somos sempre outros, a fim de podermos atingir em verdade a morte que nos vive”.

Ao longo de minhas releituras de Lúcio Cardoso compreendi que seus romances eram  escritos de um leitor ávido, que conhecia toda a grande literatura. Traduziu Anna Karenina, adaptou Edgar Allan Poe para o teatro. São romances que revelam enorme cultura literária e o rebuscamento de seu texto não é mais que o exercício brilhante de alguém que conhecia profundamente esse ofício. Um tributo aos grandes autores que povoaram seu mundo de leituras inesquecíveis.

Lúcio Cardoso continua sendo, de alguma forma, um mistério para mim. Mesmo hoje, quando retomo um dos seus livros, eles continuam a me espantar. Creio que era um mistério para ele mesmo, ou, pelo menos, fez-se de si um enigma autoconstruído. Como diz em um dos poemas mais expressivos desse seu universo particular, Quem é Aquele que não Sendo Alguém:

“Quem é aquele que não sendo alguém
investe com o frio do inverno,
esmorece
resplende e devagar entardece
como se suceder fosse inferno?
Há um lema no infinito:
ninguém é ninguém.
(…)
morre o que finito na tarde arde –
em seu esplendor de abismo encarde
o morto –
ei-lo que cintila em seu pretenso –
e a verdade
é veneno que queima sem direção.
Aquele é Lúcio Cardoso
em seu calmo sepulcro:
o que brilha
é o que brilha do gênio em seu fulcro.”